a imaginação como solução para recriar passados
novelas, livros, viagens no tempo e aniversário da newsletter!
a televisão como ponto de partida
a televisão sempre foi um elemento importante na minha formação, muitas lembranças de infância tem esse objeto como ponto de partida. tardes chuvosas em que a diversão de férias era assistir castelo rá-tim-bum dentro de minha barraca composta basicamente por lençóis presos ao sofá; a meta de conseguir vencer o sono e acompanhar a programação para além da novela das oito, desejo raramente alcançado; ou os dias de férias passados ao lado de uma vizinha querida com a companhia do vale a pena ver de novo exibindo roque santeiro e asa branca povoava meu imaginário - demorei muito tempo para entender que o professor-lobisomem apaixonado não iria me pegar-, ou as desventuras de jô penteado em a gata comeu. 1
eu tinha dificuldade de separar o que pertencia apenas aquele mundo localizado atrás de uma tela e o que cabia na realidade. não raras foram às vezes em que me imaginava a própria angélica borrando os tecidos de realidade e indo parar naquela fábrica de sonhos. as aventuras de crianças perdidas em ilhas misteriosas caçando tesouros e descobrindo sentimentos, despertaram tanto meu interesse me fazendo criar no papel histórias paralelas inspiradas em ilha rá-tim-bum, corpo dourado e digimon2. obras que me possibilitariam explorar a liberdade viajando pra um mundo paralelo. mas tinham viagens que mesmo com minha pouca percepção me provocavam arrepios.
assim como grande parte dos brasileiros, minha família sempre foi noveleira, status que carrego até hoje, fazendo do produto a fonte dos meus estudos. jantar assistindo às novelas das seis era algo comum, do mesmo modo que terminar o dia acompanhando as desventuras de jades, helenas, maria clara diniz e tantas outras heroínas faziam parte da rotina. sempre usando a imaginação eu tentava me inserir nessas tramas, mas às vezes o exercício me transportava para lugares estranhos. foi em vários desses momentos de viagem que comecei a me entender como negro e perceber, ainda de forma muito sútil, o lugar que essas narrativas queriam que eu ocupasse no mundo.
quando voltava para uma daquelas fazendas de café, sempre disponivéis nas tramas rurais exibidas ao final da tarde, me via numa posição muito desconfortável. terra nostra foi um dos meus traumas nesse sentido, diferente da solar corpo dourado, que me colocava diante de mistérios e aventuras, a trama de benedito ruy barbosa recriando o período de chegada dos italianos a são paulo, despertava medo, pois ali era claro a posição do negro naquela sociedade. lembro de questionar minha mãe sobre isso, questionar as professoras na escola e apesar das tentativas de explicação e debate, a realidade se colocava a frente.
as histórias como recurso imaginativo
recentemente li o livro eu tituba de maryse condé. a história da escravizada que foi levada até os estados unidos e sobreviveu ao julgamento das bruxas de salém. a autora partiu de um fio de realidade, tituba foi realmente a única mulher julgada como bruxa a sair livre. escravizada, trazida de barbados aos estados unidos, porém ninguém sabia sua história real, ninguém se interessou em registrá-la. o que condé faz é aliar os dados históricos e criar um mundo para tituba. é claro que a personagem do livro é uma criação sem nenhum compromisso de preencher os espaços vazios deixados pela história oficial, mas quando não temos acesso a essas informações, a imaginação torna-se uma grande aliada.
no brasil temos um poderoso exemplo nesse mesmo sentido, um defeito de cor de ana maria gonçalves é um calhamaço de mais de mil páginas narrando a vida de kehinde, desde antes do seu nascimento, ainda em solo africano, até a chegada ao brasil e todas suas provações, vivendo como escravizada, conquistando a liberdade e retornando a áfrica. o livro recria oito décadas de vida dessa mulher que recebe em solo brasileiro o nome de luisa e que em determinado momento de sua trajetória dar à luz a luís gama. além de ser instrumento chave para uma das mais importantes batalhas contra o regime escravocrata, a revolta dos malês. gonaçalves assim como condé utiliza dos buracos deixados pela história oficial, pela falta do interesse em preservar essa memória, usando a imaginação para dar uma vida completa a essas mulheres. no caminho conhecemos outras realidades, nos familiarizamos com estratégias de sobrevivência dos escravizados, como o comércio e a organização em confrarias, conhecemos o início da organização de algumas casas de religiões tradicionais, como o candomblé das nações ketu e jeje.
um defeito de cor é uma narrativa ficcional, mas sua importância vai muito além das estratégias narrativas criadas pela autora. desde seu lançamento a obra ocupa um importante destaque no nosso imaginário social, pois é um dos raros materiais artísticos amplamente compartilhados a fornecer um panorama da vida de negras e negros no período escravocrata. as situações descritas e vividas pelas personagens principais se diferenciam daquelas apresentadas em outros produtos, principalmente pelas telenovelas - o produto audiovisual mais consumido da américa latina e principal fonte de entretenimento e informação no brasil ao longo dos seus 70 anos.
conhecemos em detalhes, ainda que apresentados pelo tecido da ficção, a vivência e desejos de personagens inspirados em pessoas comuns. é o caso de kehinde que para sua composição a autora baseou-se em diversas mulheres negras, incluído a própria luisa mahin, importante aliada na organização da revolta dos malês. ao reconstruir a vida de tituba, condé insere elementos que destoa da narrativa comumente apresentada sobre a realidade daquelas mulheres condenadas a fogueira pela igreja católica, acusadas de praticar bruxaria, o que na realidade significava o domínio de outros tipos de conhecimentos, como a maneira correta de lidar com ervas, além de outras perspectivas de entendimento espiritual.
essas duas obras me fazem pensar em uma questão muitas vezes ignorada por nós, espectadores/leitores. ao retratar o dia-a-dia de personagens escravizadas, ou que viveram nesse tempo histórico, temos a oportunidade de, através da ficção, vislumbrar diferentes perpeções e vivências. é também o caso da telenovela lado a lado, exibida em 2012 pela rede globo3. considerada por muitos como um marco histórico da representação negra em novelas da emissora, justamente por subverter a lógica da representação. a personagem principal, isabel vivida por camila pitanga, traça um percusso narrativo diferente ao que é esperado para personagens negras em narrativas audiovisuais. os autores se inspiraram em personagens reais e introduziram noções da realidade daquele período histórico, o início do século xx.
o que essas obras tem em comum é a capacidade de usar a ficção como um poderoso instrumento de reparação social. é como se pudessemos acessar uma máquina do tempo e recriar a história, mas ao mesmo tempo trocamos as lentes de apreciação, tão acostumadas a narrativas de sofrimento apenas, e descobrimos potenciais histórias a partir dos mais diversos elementos. pra mim esse é uma das mais poderosas capacidades que os meios artístico possuem.
na infância, ao fazer esse mesmo exercício de imaginação, tudo o que eu tinha disponível eram narrativas no mínimo incompletas. viajar pro sítio do pica pau amarelo implicava em sempre ser alguém deixado de lado, ou tratado como moleque levado, nunca o esperto pedrinho mimado e querido pela vovó. na são paulo do início do século de benedito ruy barbosa eu só poderia ser o garoto de recados pra emocionar o tiago lacerda, na divertida anos vinte do walcy carrasco eu apenas seria o moleque gente boa que a protagonista usa para fazer suas vontades.
cresci em frente a televisão e essa influência traz diversos instrumentos para minha vida, muitos positivos, claro. mas, há essa falta que vira e mexe retorna e faz com que eu reflita sobre a importância de nos enxergarmos como personagens com muito mais a ser dito. a leitura de eu,tituba me despertou para essas relações, me deixando instigado a conhecer mais de outras realidades. acredito que este seja um caminhos que podemos seguir através das diversas maneiras e formas de construção de mundos na ficção, seja por meio audiovisual ou na literatura.
dois anos de “sobre tudo, sobre nada” e eu realmente não gosto desse título, mas como mudar?
em dois mil e dezesseis eu era um simples estagiário prestes a ter a carteira assinada assim que assinasse primeiro a folha do diploma na universidade. diariamente chegava na emissora em que prestava serviços e sentava em frente ao computador antigo e amarelado da redação, deixava o software de edição de roteiros rodando e enquanto isso abria uma aba anônima no navegador, não para acessar sites suspeitos, mas meu e-mail pessoal. era meu momento de ler as newsletters, das mais variadas, e descobrir vários universos. foi nessa entoada que me encontrei com a patti smith, entre várias outras descobertas maravilhosas. o ponto disparador de tudo isso foi a criação da bobagens imperdíveis (a trajetória da bobagens vai além dos e-mails, gerando livros, zines e podcasts!) da aline valek (hoje escrevendo a uma palavra), que chegava todo sábado e com quem dividia meu café da manhã. vários textos da autora na época deram o start para reflexões levadas ao divã e compartilhadas com minha analista, que de tanto eu falar também começou a consumir a newletter da autora.
corta para o final de dois mil e vinte, o mundo em combustão, a falta de vacinas, o governo genocida, os vários textos do mestrado e a tristeza infinita de viver em meio ao apocalipse. em meio ao caos uma coisa aquecia meu coração, o momento de abrir a caixa de entrada e ler as newsletters queridas, que ao longo daqueles meses retornavam, enquanto vários outros autores iniciavam sua produção. foi como reencontrar velhos amigos e aquele calorzinho no coração voltou trazendo junto um sentimento de ação. pensei, e se eu também fizer minha própria newsletter? mas o que escrever? naquele momento necessitava de uma válvula de escape para as coisas que consumia de estudo, nascia assim em janeiro de vinte e um a sobre tudo, sobre nada. o tempo curto pensando no título pode ser justificado pela necessidade de começar o projeto imediatamente.
e de lá pra cá muita coisa boa aconteceu, muito encontros e trocas. a rotina de escrita destravou vários bloqueios internos, os textos aleatórios sobre observações do dia-a-dia me ajudaram a desvirar algumas chavinhas. esse espaço é muito importante para mim, enquanto escritor. fugir da lógica das redes sociais, alcançar outro tipo de público interessado em textos longos que te levam para outro texto é uma oportunidade maravilhosa em meio a uma internet que cada vez mais se confunde com um shopping lotado. se eu pudesse deixar uma dica para você neste novo ano é: faça uma newsletter ou qualquer coisa que ajude seu processo pessoal, sem se preocupar com os algoritmos.
muito obrigado a você que ler esta publicação e aos meus leitores patrocinadores ❤️. e se você quiser também colaborar basta acessar as infos na minha página do apoia-se. ❤️
🥂 top cinco meus textos favoritos nesses dois anos de publicação
01 - nesta carta eu celebro a vida e a cidade (edição de março de 21)
02 - aos treze (edição de agosto de 22)
03 - carmelita - memórias, videocassete e obsessões (edição de agosto de 21)
04 - o astronauta da saudade (edição de agosto de 22)
05 - três momentos (setembro de 21)
e você, tem algum texto que te marcou de alguma forma? fala pra mim nos comentários ou respondendo esse e-mail, vou adorar bater um papo com você!
fugiu do texto mas as novelas infantis do sbt também eram minha paixão, além das clássicas chiquititas e carrossel, cúmplices de um resgate e o diário de daniela foram minhas companheiras. mas minha paixão já ali no final da infância, inicio da adolescência foi rebelde.
as três obras compõem o meu mito pessoal do impulso a escrita.
lado a lado foi meu objeto de estudos no mestrado, o resultado pode ser lido através da minha dissertação “tem negra nessa novela? representação de mulheres negras em lado a lado”.
Oi Victor! Eu amei este texto. E, como maior fã da novela Lado a Lado que existe, eu queria muito ler sua dissertação de mestrado. Tem como?
Um abraço!