Carmelita | memórias, vídeo cassete e obsessões
“O cultivo é o melhor professor. Se você cultiva o esquecimento, alimenta a lembrança da dor para se convencer que tem que esquecer. Se cultiva a memória, pode escolher alimentar a dor ou o impulso da liberdade.” (extraído do filme Um dia com Jerusa (2020))
Todos se lembram daquela manhã no dia 11 de Setembro de 2001. É famoso o debate sobre a programação infantil na ocasião, estava ou não passando Dragon Ball Z? Da minha parte tenho claro na memória dois fatos: 1) o momento em que saí da escola - que ficava na rua atrás da minha - a pé e sozinho. Como só precisava atravessar uma única rua eu era acompanhado pela professora no processo e depois podia seguir sozinho até minha casa. Cheguei em casa e corri pra sala esperando assistir algum desenho, tenho essa imagem de um Victor de 9 anos ligando a televisão, quase colando a cara em frente aquela tela de tubo preto, esperando encontrar uma imensidão de desenhos que pudessem me distrair por 20 minutos, tempo que tinha antes de correr pro banho e almoçar para retornar ao segundo turno de aulas. Mas o que encontrei foram comentaristas falando algo que não conseguia entender e reprisando constantemente a assustadora imagem de aviões se chocando contra prédios. 2) Lembro em seguida de minha mãe chegando em casa aflitíssima, e foi aí que de fato comecei a entender que aquela colisão que se repetia ao infinito na tela da TV, obliterando meus minutinhos de descanso, era uma coisa muito séria. Mas mainha não estava preocupada com conjunturas políticas ou o choque que esse fato provocaria na formação histórica do mundo, nem estava pensando como suas futuras aulas de história seriam moldadas por esse evento, ela estava preocupada era com Carmelita.
Carmelita foi uma das melhores amigas de minha avó, ela era nossa vizinha na Dom Quirino. Carmé, como era conhecida pelos amigos aqui do Bairro ou pelo menos na minha família, era uma senhora que gostava de conversar sobre muitas coisas, principalmente sobre suas viagens. A Paris que desejei conhecer durante toda a infância era uma Paris vista pelos olhos dessa mulher carioca-sergipana. Aliás, o Rio de Janeiro tão bem nutrido nas lembranças familiares, também se formou em parte pelos comentários de Carmé. Ela não só falava dos pontos turísticos e da beleza, mas associava eles a minha tia-avó, meu padrinho, seus filhos e netos, o que fazia com que na minha cabeça de criança pisciana a cidade maravilhosa fosse uma parte inseparável da minha história, o que é de certa forma. Suas viagens pelo mundo se tornavam facilmente o assunto de qualquer conversa, ela sempre começava com um longo suspiro e de uma forma que poderia ser interpretada pelos olhares menos atentos como blasé ou grosseria, começava a narrar seus dias nessas cidades.
Sua viagem para os Estados Unidos vinha sendo alardeada já há algum tempo, o itinerário que seria feito, as cidades que iria visitar, os pormenores com os dólares para trocar, enfim, suas conversas já vinham apresentando o país para quem estivesse disposto a escutar. Na minha cabeça de criança que vivia sonhando acordado aquela era a primeira vez que me despertava o interesse pelas terras do tio Sam. Nessa mesma época meu irmão mais velho começava a desenvolver uma estranha obsessão por ir embora do Brasil (o que de fato aconteceu, mas o destino não foi o mesmo da Sol, em um dia ensolarado no final de Maio de 2004, com a cabeça pra fora da janela ele gritava pela avenida 13 de Julho o seu adeus enquanto no outro banco do carro mainha chorava em silêncio). Naquele ano em que diariamente acompanhava com um certo medo as aventuras de Guma e Lívia seguida dos drama scifi de Jade e Lucas e Leo indo desde a Bahia ao Marrocos, os Estados Unidos, mais precisamente Nova York, entrava no meu imaginário tanto em casa como na rua. Justamente por Carmé falar com todos os detalhes da sua viagem, sabíamos que exatamente na manhã do dia 11 de Setembro ela estaria em Nova York, daí a preocupação da minha mãe.
Mais tarde soubemos que estava tudo bem com ela. Foi por pouco, sim estava próxima ao local, iria pra lá no mesmo dia, sim foi um horror. Mandou avisar aos amigos por uma ligação interurbana. Semanas depois Carmé voltou a Dom Quirino, cheia de histórias como sempre, e voltou a sua rotina normal. Diariamente ao final da tarde acomodava-se na porta de sua vizinha de frente e ficavam as duas conversando, avistando o movimento da rua e compartilhando memórias. Eventualmente eu passava por elas acompanhado de minha mãe voltando da escola, eu que não entendia das engrenagens do tempo me impacientava e puxava a mão de mainha pra apressar o passo pra casa, o que não adiantava nada. Ela, como boa geminiana que era, não negava uns minutinhos de papo furado. Foi num desses fim de tardes que Carmé olhando diretamente nos meus olhos, ansiosa por compartilhar um tesouro valioso, descreveu detalhadamente a forma do convite de formatura de minha mãe. O encanto que demonstrou pela letra cursiva que mainha tinha - elogiada por 10 a cada 10 pessoas que liam algo escrito por ela - a cor dourada da tinta, o papel fino. Lindo! Dizia com lágrimas nos olhos. A emoção não era apenas pelo convite todo feito a mão, como se fosse um bordado de palavras, mas era pelo fato da filha-sobrinha mais nova de Bárbara, sua amiga, ter se formado. A formatura já tinha acontecido há mais de 20 anos, nesse época faltava menos de uma década pra aposentadoria de mainha, mas para Carmé ainda era uma memória afetuosa e alegre e presente.
O convite de formatura de história, os tickets de trem e metrô de Londres e Paris, as passagens, as moedas estrangeiras, os bordados encontrados pelo mundo a fora, tudo isso compunha o tesouro dessa mulher apaixonada pelo mundo ao seu redor. Dessas coisas lembro de ter visto alguns papéis amarelados onde quase não dava pra ler nada, uns tecidos de corte bonitos escondidos por camadas e camadas de manchas amarelas e marrons. Lembrancinhas douradas perdendo o brilho, joias desgastadas pelo tempo que mais pareciam bijuterias. Seus tesouros eram seu orgulho e ela exibia os objetos com um distinto brilho nos olhos. Me pergunto se seu olhar capturava a cara de desgosto e desaprovação dos seus interlocutores ao se deparar com tudo aquilo que mais parecia lixo. Será que ela se importava? Carmé era uma mulher independente, vivia sozinha, tinha algumas casas em Aracaju e no Rio onde alugava, emprestava pequenas quantidades de dinheiro a juros aos vizinhos. Tinha uma vida confortável, apesar de morar numa casa em que o banheiro era um quarto afastado no fundo do quintal, marca de uma arquitetura que há décadas já havia sido superada.
Sua casa, pintada em tons pastéis, parecia vista de fora como um museu empoeirado, um museu particular. Entrei lá algumas vezes com mainha, a sensação era sufocante. Ela vivia amontoada em lembranças, resquícios de outras vidas, outros momentos. Carmelita vivia rodeada de seus fantasmas e era muito feliz com eles. Na minha visão de criança, essa senhora, quase da mesma idade de minha avó mas aparentando ser tão mais frágil, era uma figura tediosa, com história longas e chatas. Dessa época até hoje 20 anos se passaram e suas histórias ainda encontram ecos na minha imaginação. O dia em que ela falou pra mim sobre o convite de formatura tá gravado como um quadro. As cores meio alaranjadas do céu, as cadeiras marrons que as duas amigas estavam sentadas, a calçada em tons de cinza e branco e azul marinho, a calça jeans de minha mãe onde eu apoiava minhas mãos. Tudo tá cravado em mim.
Depois de sua aventuras pelas terras do tio sam suas viagens internacionais cessaram. Continuava indo na cidade maravilhosa, continuava em excursões com minha avó pelo Brasil. Um tempo depois que minha mãe morreu eu sai da Dom Quirino, minha impaciência aumentou, assim como outros sentimentos. Encontrava Carmé, claro, na casa de minha avó todos os Domingos, ela fazia sua visita pontualmente as 9:30 depois da missa, raramente ficava pro almoço, essa atividade realizava com outra amiga. As vezes no fim de tarde também aparecia. Festas, comemorações, terços, velórios, ela sempre aparecia, mas nossas trocas eram limitadas, eu adolescente me furtava a ter esse contato. Pensando bem agora as conversas de Carmelita estava demais associadas a minha mãe, era um quadro do qual por muitos anos coloquei um lençol por cima. Vi ele ir amarelando e ficando podre iguais aos panos que Carmé ostentava e que só eram importantes pra ela. Agora me ponho a espanar a poeira e arejar o espaço fazendo as pazes com as lembranças. Vasculhando os baús do tempo me deparei com a imagem de Carmelita me chamando pra escutar mais uma história. Pacientemente parei para ouvi-la.
Carmerlita morreu depois de minha avó, com mais de 90 anos. Com o avanço das doenças precisou fazer algo que durante boa parte de sua vida recusou, ir morar com os parentes no Rio de Janeiro, foi tolhida sua liberdade. Aqui em Aracaju deixou sua casa, uma das inúmeras casas fantasmas da Dom Quirino que ao anoitecer transbordam ausências. Me pergunto hoje se por detrás daquele portão tão enferrujado, daquela porta de madeira sem cor, o convite de formatura de minha mãe ainda sobrevive junto aos tickets de metrô e outras lembranças.
Na década de 1980 algo de revolucionário chegava às casas brasileiras modificando de uma vez por todas as estruturas audiovisuais. Ele, o vídeo cassete. Agora as famílias que tinham condições financeiras suficientes para adquirir o aparelho poderiam dar um passo além de independência em relação as redes de televisão, quebrando assim a fixidez das grades de programação. A possibilidade de gravar aos programas para rever a hora que bem entender foi uma novidade e tanto nas nossas vidas e logo causou um reboliço, uma verdadeira revolução. E assim as pessoas começam a gravar aquele filme que passou na sessão da tarde uma vez e nunca mais havia sido reprisado, ou o final daquela novela com temas polêmicos que até hoje nem o vale a pena ver de novo ou o viva tiveram a coragem de reprisar.
E foi graças a esse hábito tão presente lá nos anos 1990 que um dos meus passatempos favoritos aqui na segunda década dos anos 2000 se mantém. Assistir aos intervalos comerciais antigos. É um hobby que começou em 2016 enquanto escrevia meu TCC e surtava sem conseguir assistir mais nada, de repente uma sugestão no youtube de um canal de nostalgia me levou a um compilado de propagandas e fui indo de vídeo em vídeo, recuperando minha alegria. Hoje existem vário canais no youtube que além de postarem comerciais publicam alguns programas da Rede Manchete ou de outras emissoras, são verdadeiras relíquias. Esse material vem dessas fitas de vídeo de gravações de programas de TVs antigos encontrados em sebos ou doados a colecionadores que fazem esse trabalho. Muitas dessas fitas estavam guardadas como bugigangas dos parentes, pequenos tesouros audiovisuais que tiveram importância para alguém um dia.
Deixo como recomendação a retrospectiva da Globo do ano 2001 é uma verdadeira viagem no tempo.
De tempos em tempos encontro uma leitura ou um autor/autora que me deixa completamente obcecado. Uso essa palavra sem medo de parecer exagerado ou algo do tipo. O livro invade a minha vida de uma forma avassaladora e me faz reavaliar o mundo ao meu redor. Isso não acontece o tempo inteiro, mas é um evento já esperado e que me desperta de um estado de inercia que eu nem sabia que estava.
A primeira vez que me percebi nesse estado foi depois da leitura daquele que se tornou um dos meus livros favoritos da vida, 1Q84 de Haruki Murakami, autor que tenho inúmeras ressalvas, mas que com certeza é um dos que mais me influenciam. O realismo fantástico de Murakami me levou de encontro com um mundo novo dentro de mim. Encontrei na leitura uma bussola para (re)encontrar as minhas motivações artísticas/literárias/cinematográficas.
Tempos depois cai no meu colo o livro A filha perdida de Elena Ferrante. A autora ausente ganhou uma presença tão forte em minha vida que há mais ou menos seis anos pelo menos uma vez ao ano releio suas obras (ao menos um livro). Suas obras mais conhecidas e celebradas são os que compõem a tetralogia napolitana, mas a história de Lila e Lenu, apesar de ser realmente extraordinária, não chega perto do efeito que Leda me provocou. Foram nas páginas de A filha perdida que pela primeira vez consegui pôr nome em um sentimento que vinha há anos perseguindo nas minha sessões de análise. O impacto foi tão forte que por quase 6 meses todas as minhas consultas começavam e terminavam falando da obra.
Na mesma época em que comecei a ler Ferrante vários blogues literários começavam a falar sobre Karl Ove Knausgård e sua autoficção extremamente detalhista. Só consegui pegar seus livros da série Minha Luta esse ano e BOOOM! Aconteceu! Embarquei na história de cabeça ao ponto de começar novamente a questionar toda a minha visão de mundo. Nesse caso especifico a minha relação com a escrita ficcional. Karl Ove escreve suas memórias, o que pode ser um fator que chama atenção é que ele começou a escrever com menos de 50 anos.
Os livros não são apenas uma autobiografia, o autor recupera detalhes de seu dia-a-dia nessa luta para se tornar um escritor. E é justamente na rememoração de coisas tão banais que reside o poder da obra. Os livros são enormes, tem atravessado comigo esses meses de incertezas e medos. Já falei aqui na edição passada que sou nostálgico e gosto de rememorar tudo o que vivi ao longo desses 29 anos no mundo. Me encontrar nesse momento especifico com essa leitura causou um efeito semelhante ao meu encontro com Murakami e Ferrante, são autores que pegaram minha mão e me levaram pra um novo caminho. É meio isso também que a literatura, as artes em geral, serve né?
Ler a vida de Karl Ove (ainda estou no segundo livro da série Minha Luta, são 6 no total) de alguma forma me autorizou, ou melhor, despertou a necessidade de aliar a escrita a minha obsessão particular com a rememoração. Tenho tentado exercitar esse aspecto através da criação livre. Esse texto onde me reencontro através das palavras com Carmelita, personagem real da minha vida e de minhas memórias, é uma tentativa disso. E tenho ido além, espero conseguir compartilhar mais dessas experimentações aqui.
DoctorRuth
Na 9ª temporada de Doctor Who a personagem Ashildr/Me encontra-se com o doutor em sua linha temporal ainda nos tempos medievais. Por consequência dos problemas, tão típicos na vida do(a) alienígena de dois corações, ele dá a menina um dispositivo que a faz viver para sempre. Sabendo do peso da incumbência dada - ou da sentença disposta- ele lhe oferta um outro dispositivo para que seja usado em alguém que ela confie e assim viver a eternidade compartilhada. Alguns episódios a frente, agora já na era vitoriana, reencontramos a menina que se intitula de Lady Me. Uma das cenas que mais me marcou nesse episódio é quando a garota revoltada questiona o doutor sobre o porque de ter lhe dado aquele dispositivo, para ela a vida eterna era uma maldição. Ela dizia isso numa biblioteca enorme, ali estavam guardados não só seus livros, mas seus longos diários. Por ser humana e não ter a capacidade cerebral de reter tudo na mente, ela escrevia tudo o que vivia. Eventualmente esquecia completamente e ao ler aquelas páginas era como reencontrar ou reconhecer uma outra mulher, revivendo assim amores antigos e outros sentimentos.
Lady Me segue viva por toda a eternidade. Sua controversa última aparição na série tem desfecho justamente no fim do universo. A saga de Ashildr é uma das minhas favoritas dentro dessa série que em breve completa 60 anos. Tudo o que essa garota mais desejava era poder parar de fazer memórias. Em sua biblioteca e mais tarde em todas as suas versões vivia rodeada de fantasmas, sombras de outras vidas. Imagino a sala da casa de Carmé no inicio desse novo milênio, consigo vê-la sentada em sua cadeira de balanço apreciando cada objeto guardado como se fosse um tesouro. Ao compartilhar suas histórias com os vizinhos e amigos ela fazia algo semelhante a Lady Me, plantava uma semente de recordação que seria colhida mais a frente por outra pessoa. Imagino também Karl Ove sentado em frente ao seu computador escrevendo freneticamente como se as palavras conseguissem barrar a passagem do tempo, materializar um fluxo. Ao reescrever sua vida com detalhes ele não revive nada daquilo, mas cria uma história usando a memória como ponto de partida. Assim como Lady Me/Ashildr, assim como Carmé, assim como eu agora.
ATÉ MAIS E OBRIGADO PELOS PEIXES!
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