o astronauta da saudade
Estávamos em pé em frente a vários objetos de sua estima, ela os mantinha em um cômodo da casa especialmente reservado para este fim. Lá também mantinha o estoque mensal de alimentos, produtos de limpeza e outras coisas para a manutenção do lar, estes ficavam numa estante de ferro em frente a porta de entrada. O que me interessava mesmo eram os objetos espalhados por várias outras estantes acomodados por toda a extensão do quartinho em formato de L, caixas de diferentes tamanhos ocultavam objetos e despertavam minha curiosidade. Eram os acumulados de uma vida.
Encostado na porta observei atentamente quando ela pegou uma caixa marrom, aparentava ser pesada, mas a tratava com delicadeza, limpando-a com um paninho de flanela. Com a mesma delicadeza depositou o objeto, até então um desconhecido, numa mesinha à minha frente.
"Isso aqui eu não dou para ninguém" falou com um olhar distante como se estivesse perdida em outros tempos.
Deve ter notado o brilho no meu olhar à medida que assimilava aquele estranho objeto. Repetia "Isso aqui eu não dou pra ninguém".
Pegou a flanela e começou a passar delicadamente por cada parte daquela máquina, suas mãos tocavam o objeto, letras aleatórias saltavam emitindo um som característico. Imagino que aquela melodia a fizesse retornar para a sua antiga sala de trabalho quando aquela máquina ocupava uma grande extensão de seus dias.
"Foi com ela que consegui tudo que tenho". Dizia não exatamente para mim. Da minha parte continuava a admirá-la desejando poder também embarcar naquele devaneio, viajar através de suas memórias, conhecê-la mais jovem, entender seus sonhos e desejos.
Continuava a passar as mãos pelas teclas sorrindo, ela sempre estava sorrindo. Fitei aquelas mãos, eram mais pretas do que as minhas, delicadas e pesadas ao mesmo tempo, as unhas pintadas de uma cor forte tão viva quanto ela. Imaginei aquelas mãos deslizando pelas teclas, elaborando documentos na velocidade exigida pelo sistema. Imaginei aquelas mãos ao fim do dia cansadas da rotina de trabalho, a vi chegando em casa e se deparando com mais um turno, dessa vez sem a companheira de letras. O fogo, as panelas, as roupas para lavar, os remédios a distribuir, o dinheiro das compras a somar. Aquelas mãos tinham a capacidade de se converter e enfrentar qualquer serviço.
E num lapso de tempo a vi andando pela avenida carregando aquela caixa marrom pesada, segurando com orgulho a matéria-prima de seu trabalho, a fonte de onde tudo nascia. Escutei aquele barulho característico da letra se apegando ao papel, observei atentamente a sua concentração ao digitar palavra por palavra. Ouvi a sua voz atravessando os anos e me lembrando da importância de usar bem as palavras.
O barulho do fecho da caixa me despertou, ela deve ter visto meus olhos de criança brilhar e decretou pela última vez "disso aqui não me desfaço nunca" fechando o tampo da caixa da máquina de escrever e recolocando na parte mais alta da pesada estante de ferro.
Daquela máquina não saíram textos que se consagraram no mercado literário, não, o resultado do esforço diário produzido por aquelas mãos pretas eram regulações e contratos, documentos internos que se destinavam uma hora ou outra ao lixo. Mas não era isso que importava para ela, o que lhe fazia ter em tão estima um objeto de trabalho era justamente o seu resultado pessoal.
Há algumas semanas estive na casa que pertenceu a minha avó. Ela faleceu em 2013 e com exceção dos eletrodomésticos, tudo permanece do mesmo jeito que ela deixou quando precisou ser internada no hospital. Ao lado de sua cadeira de balanço tem um banquinho onde se acumulavam revistas e livros, das revistas eram consumidas apenas as palavras cruzadas. Remexendo nesse cantinho encontrei um amontoado de folhinhas amareladas, eram as páginas do calendário do sagrado coração de jesus com suas páginas diárias removíveis. Me surpreendi ao encontrar folhas que continham piadas e outras frases de humor datadas desde 2001. Era sua pequena coleção que mantinha sempre por perto, talvez esperando o momento em que poderia sacar uma piadinha e preencher o ambiente com seu sorriso contagiante.
Minha avó era uma mulher de riso fácil, ao vasculhar as fotos nos álbuns é muito comum encontrá-la sorrindo abraçada com amigos e familiares, com vizinhos e até com estranhos, logo ela adotava a pessoa como uma velha amiga. Nos retratos de suas últimas celebrações de aniversário é possível enxergar um salão cheio de pessoas queridas. Minha avó também era uma mulher de choro fácil, bastava falar de algumas de suas saudades para seus olhos se transbordarem em rios. Mas logo recuperava o compasso e voltava a sorrir, às vezes até em meio às lágrimas. Minha avó era uma mulher que sabia viver, aproveitar a vida e desejava que todos ao seu redor experimentassem tais sentimentos.
Eu ainda era criança quando ela me falou de sua máquina de escrever, agora vasculhando sua casa vazia recolho para mim este objeto, me colocando como seu cuidador. Motivado pela presença da minha mãe ainda bebê em algumas fotos em preto e branco, recolhi também várias fotografias, em algumas delas encontro minha avó nos anos 1950, mais nova do que eu neste 2022. Ela usa roupas elegantes e posa ao lado de pontos turísticos do Rio de Janeiro, cidade em que sua irmã escolheu abraçar pro resto da vida. Ela sorri para câmera, seus olhos revelam uma felicidade genuína. Me sinto invadindo uma narrativa que não é minha, me parece um momento tão íntimo. Me pergunto o que ela estaria pensando, quais eram seus sonhos naquele momento. Tento encontrá-la através da imagem, num momento sou eu quem está segurando a câmera que a eterniza.
Noto nas fotografias o sorriso, a falta de timidez diante da câmera, como se soubesse que naquele registro de viagem estaria salvo muito mais do que paisagens exuberantes, mas também um pouco de si. Para sempre, ou pelo tempo que durar as marcas da memória.
Volto aquele dia, não sei exatamente se era um dos nossos Domingos antes ou depois do tradicional almoço em sua casa, talvez tenha sido numa quarta-feira qualquer, na época em que eu almoçava lá todos os dias e que ela preenchia todos os momentos de silêncio com alguma história de sua vida ou qualquer outra anedota. Havia a acompanhado ao quartinho para pegar alguma coisa, quando ela se deparou com a máquina de escrever e compartilhou um pouco de sua história. Fiquei fascinado, me encantei pelo carinho que ela mantinha por um objeto obsoleto que aparentemente não servia para nada mais. Mas para ela era um de seus mais importantes tesouros. As memórias atreladas aquela máquina ultrapassam as barreiras do tempo, muitas delas se foram para sempre, algumas outras permanecem espalhadas por aí, me sinto honrado em poder guardar um mínimo desse tesouro.
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