três momentos
o patinete
Em frente a minha cama tinha uma cômoda com seis gavetas, sua cor destoava de todos os outros móveis do quarto. O móvel havia trocado de lugar recentemente, antes ficava no quarto de minha mãe, onde fazia conjunto com a cama. A virada do milênio trouxe além do medo do grande apagão tecnológico, a necessidade de mudanças, e assim mainha comprou para ela um nova cômoda e colocou aquela antiga em nosso quarto.
Eu e meu irmão dividíamos o aposento mais espaçoso da casa, nele cabia uma cama de casal ocupada por Thiago, o móvel do computador também usado por ele e uma pequena cômoda de madeira com duas gavetas coroada com uma televisão de vinte polegadas, também administrada por ele. No outro lado ficava a cama de solteiro, única coisa realmente minha, o nosso guarda-roupas, duas estantes onde alguns brinquedos e outras coisas eram soterradas por muitas tralhas do meu irmão, e finalmente a cômoda, que por falta de espaço ficava espremida na parede em frente a minha cama.
Ela era a primeira coisa que eu via quando acordava. Pra mim ela era sempre um monstro gigante com várias bocas, era necessário esfregar os olhos mais forte até perceber que era o mesmo objeto cor de vinho de sempre.
Numa manhã ao acordar levei um susto. Em cima da cômoda tinha uma caixa enorme com um laço vermelho. O susto deu lugar a um sentimento de alegria que mal cabia no peito. É claro que eu já sabia o que significava aquela caixa que me aguardava desde o exato segundo em que abri os olhos naquela manhã do dia 12 de Outubro de 2000.
Rasguei a caixa com uma empolgação típica de uma criança que tem seu desejo realizado, tirei aquele pesado objeto de metal da caixa e sai deslizando pelo corredor, fazendo força no pé esquerdo enquanto equilibrava o corpo inteiro no brinquedo. Abri correndo a porta do quarto de mainha e agradeci efusivamente pelo presente.
Naquela manhã me senti a pessoa mais feliz do mundo.
O jogo da vida
Saímos da escola ao entardecer, caminhamos até a Lojas Americanas, cruzamos corredores abarrotados de ofertas imperdíveis até chegar na sessão enfeitada com diversos balões e placas coloridas. Várias crianças se amontoavam ao redor dos produtos da Xuxa, patins, bonecos superarticulados e diversos outros objetos multicoloridos. Passamos direto por essa afobação toda e chegamos na prateleira onde ficavam os jogos de tabuleiro. Eram dezenas de opções, dos mais fáceis ao mais difícil, várias versões de banco imobiliário e outros jogos clássicos em versões especiais e novos formatos, um mundo inteiro de possibilidades.
Por algum motivo naquele ano eu havia resolvido que gostaria de ganhar um desses jogos, até então nunca tinha sido uma criança que ligava muito para esse tipo de brincadeira. E assim saímos das Americanas com um O jogo da vida, dois quebra-cabeças e uma caixa de chocolates. Esse foi provavelmente meu último presente de dia das crianças.
O jogo foi um sucesso entre meus amigos, rodávamos a roleta e projetávamos futuros cheio de reviravoltas. Era divertido a facilidade de trilhar várias vidas em uma única noite. Perder todo o dinheiro, casar, ter filhos, eventualmente morrer, tudo protegido num tabuleiro que prometia diversão sem fim.
Enquanto brincava com os amigos aproveitando esse presente de dia das crianças, começava a lidar com uma angústia que crescia dentro de mim e rapidamente ocupava grande parte dos meus dias.
Essa lembrança divide espaço com o dia em que fui a um consultório e retornei com uma lista de vários medicamentos que prometiam aliviar a tal angústia, ainda sem nome naquele tempo, mas que já anunciava sua longa permanência. Essa lembrança também se aproxima das diversas vezes em que voltava para casa depois de passar a tarde com mainha no médico, onde sem entender muito bem via chegando cada vez mais perto a sentença de morte que lhe anunciavam a cada mês.
O fim da infância se apresentava num tabuleiro e nas caixas brancas com pequenas faixas pretas.
os bonecos Max Steel
Eu tinha um cantinho preferido no sofá da sala para brincar. O vão entre o braço e o acento era como se fosse um mundo novo pronto para ser explorado por minha imaginação. Tudo ao meu redor poderia ser material para a construção desse mundo, desde os brinquedos até objetos quebrados considerados inúteis para cumprir seus objetivos iniciais, nas minhas mãos eles se transformavam em algo novo.
Tinham os carrinhos coloridos, vários modelos, eu não sabia o nome de nenhum, coisa que até hoje não sei. Porque insistem em dar carrinho de brinquedos a meninos? Nem minha imaginação acostumada a construir novos mundos onde as coisas pudessem fazer sentido dava conta de encaixa-los. E tinham também os bonecos Max Steel, objetos de desejos das propagandas cheia de cores e sons que invadiam o programa da Eliana e despertavam diversos outros desejos.
Um dia ganhei um desses bonecos, não lembro como começou mas por algum motivo minha mãe achou que eu queria fazer uma coleção. Os bonecos eram dois ou três no máximo, nas brincadeira eles ficavam jogados em algum ponto do sofá. Não sabia muito bem o que fazer com eles, no meu mundinho que se estendia naquele espaço do sofá no meio da sala, aqueles heróis brancos e loiros, musculosos com armaduras segurando imponentes armas, não faziam sentido.
O que despertava mais minha atenção eram pedaços de outros objetos que poderiam facilmente (na minha cabeça pelo menos) funcionar como bonecas. E aí é que a mágica acontecia, pedaços de fios viraram personagens de novelas manipulados por mim, e eu criava histórias sobre suas vidas e amores e passava tardes inteiras assim. Eventualmente era flagrado, o lençol que eu julgava como proteção, se desfazia. O pedaço de corda ou qualquer coisa que tinha na mão era arrancado e em seu lugar o boneco Max Steel era colocado.
Esses bonecos e carrinhos foram os primeiros presentes que lembro de ter recebido como um presente de dia das crianças. Em pouco tempo eles encontraram uma sobrevida em outras casas com outras crianças. Eles eram um fardo pra mim, odiava ter que brincar de algo contra a minha vontade apenas por ser o certo. Na minha imaginação as toalhas transformadas em perucas eram muito mais interessantes do que elaborados bonecos musculosos de ação.
Foi duro descobrir que eu não era exatamente o que as pessoas queriam que eu fosse.
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Sobre tudo, sobre nada é uma newsletter enviada quinzenalmente por Victor Ramos.
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