Em Linha M, Patti Smith comenta sobre uma manhã de aniversário. Em algum momento ela vira uma carta de seu baralho de tarô, um breve ritual de novo ano. O naipe de espadas brilha com sua fúria e lógica sentimental, ela parece não se atentar as relações. Ela ler Murakami, a crônica do pássaro de corda, a realidade do personagem é marcada pela falta de lógica. Sonhos invadem a realidade, mas o que é real? Ela continua seus dias, entre cafés e livros, viagens e notícias, uma avalanche de informações a atropelam. Sonhos começam a invadir a narrativa, será que alguma coisa era real? As espadas já anunciavam os sonhos que insistiam em invadir a realidade. Mas ela continua, com café em mão e bloquinho de anotações, entre viagens, reais e fantasiosas, ela continua.
Em sua peregrinação por Nova York, Paris, Japão e várias outras cidades, Patti me lembra o Arcano nove do tarô. O eremita. A solidão que ela desenha em seus escritos, principalmente em Linha M - meu livro favorito da autora-, não é uma solidão repleta de melancolia, não. Tem algo de descobertas nessas andanças por vários lugares. Me chama atenção o cuidado e que ela tem ao visitar os túmulos de artistas que admira, ou lugares marcados pela presença ausente de alguém querido. Ela conserva a memória, mas a usa para iluminar o percurso, não apenas para se deixar envolver. Em Linha M Patti sai em busca dela mesma, rememorar, a luz que carrega a frente são suas memórias, tão preciosas na vida da artista. O Eremita parte em busca de uma iluminação, carregando consigo tudo aquilo que já viveu, Patti carrega seus autores favoritos, é recorrente em sua literatura visita a túmulos, por exemplo, tanto das pessoas queridas quanto de autores que a inspiram. Patti carrega a lanterna do eremita.
Em Só Garotos ela rememora a história de amor com Robert Mapplethorpe, revisita uma Nova York que se despedaçou com o passar dos tempos, mas se mantém viva nela. É lindo rememorar os dias que vivia com seu amigo, ainda que tudo parecia ser só sufoco, mas ao olhar para trás, com sua lanterna, Patti consegue transmitir essa energia. E aí que a ficha cai, a solidão que ela evoca em Linha M, por exemplo, está repleta dessas memórias, que não são apenas fantasmas, mas faróis.
Em Devoção ela parte em uma pequena viagem, ao escolher aleatoriamente os livros que levará a Paris percebe que está indo de encontro a uma autora que a encanta, todos nós, leitores, estamos de encontro a essa Patti que busca o quê? Nem ela sabe, pelo menos não no início da jornada. No confronto, um conto, a vergonha da escrita e de não saber o que é essa escrita, nesse conto, que podemos ler integralmente no livro, vejo muito do O Diabo, décimo quinto arcano maior. Ele assusta, em muitos baralhos é grotesco, mas ele é sincero.
“Por que alguém se sente compelido a escrever? A se isolar, a se envolver num casulo, no êxtase de sua solidão, malgrado as necessidades dos outros. Virgínia Wolf tinha seu quarto. Proust, suas venezianas fechadas. Marguerite Duras, sua casa calada. Dylan Thomas, seu modesto casebre. Todos em busca de um vazio que pudessem encher de palavras. Palavras que irão adentrar um território virgem, arrombar cofres que ninguém veio abrir, articular o infinito.”
Ao finalizar a escrita, ela se questiona qual o papel da literatura? Não há resposta a tal questionamento. E ela segue continuamente em busca da iluminação, aquela que ela mesma carrega ao longo de sua viagem, eremita que é. O livro é um diário, um pedacinho do mundo de uma solitária sempre em companhia, mas sempre sozinha. Patti Smith, para mim, representa o nono arcano maior, a sua lanterna? Cadernos, livros, a escrita. Equem disse que a solidão é o fim?
Por que escrevemos? Irrompe um coro.
Porque não podemos somente viver.