“We have to go back, Kate. We have to go back!” uma revisão sentimental de Lost ou minha vida vivida através da televisão, um caso de amor.
ou como esse texto me levou de volta a Twin Peaks.
A primeira parte desse texto pode ser lida aqui.
2.
Iniciar o último ano escolar é provavelmente uma das melhores e mais esquisitas sensações que experimentei na vida. Um misto de “oba! Finalmente vou me livrar disso” com “Porra! E agora o que faço da minha vida?” (pergunta que se repete constantemente). Em 2010 eu e meus amigos mais próximos éramos todos apaixonados pelas narrativas seriadas estadunidense, assistíamos tudo o que a tevê a cabo nos proporcionava e além, arquivos .torrent e rmvb legendado inundavam nossos computadores. Era comum ver pendrives e CDs gravados passando de mão em mão com novos episódios ou àquela série completa que havia conquistado o coração de alguém na última semana. Nossos finais de semana não eram regados a álcool em festas duvidosas como nos filmes teens, mas sim a grandes maratonas e trocas de SMS ou longas conversas nos grupos do MSN e em fóruns, trocando sobre tudo o que consumíamos. E no meio dessas trocas é claro que não passaríamos imunes pelo ano que finalizava um dos maiores eventos televisivos dos anos 2000, a série Lost.
Com o anúncio da data de exibição do último episódio, organizamos uma grande maratona com o objetivo de assistir ao vivo o grande series finale, que ocupou umas oito horas da grade dominical da ABC naquele 23 de maio de 2010. No outro dia teríamos prova de matemática e história — grandes traumas inesquecíveis. E foi assim que me perdi por meses mais uma vez em uma Ilha misteriosa. É claro que desde o piloto fiquei apaixonado e todas as minhas conversas eu falava sobre Jack, Kate, Hurley, Sun, Sawer, John, Sayd, Michael e cia. Mas, naquela loucura de fazer longas maratonas, sinto que muita coisa passou despercebida. Neste ano que marca 20 anos do seu lançamento, resolvi aproveitar a inserção da série no catálogo da Netflix e todo burburinho de postagens decifrando os detalhes da trama, para rever do início ao fim, no meu tempo, um episódio por dia, degustando em pequenas doses.
A televisão sempre foi considerada uma arte inferior, os grandes diretores, os grandes artistas do audiovisual poderiam ser encontrados no cinema, lugar propício para as experimentações de linguagem e campo que possibilitava o reconhecimento dessas experimentações. A tevê era vista como algo menor, não apenas na academia (talvez em alguns lugares do Brasil essa visão ainda se mantenha), mas pelos próprios profissionais. Por volta da década de 1980 pesquisadores franceses começam a observar os fenômenos televisivos tentando compreender melhor essa linguagem, assim como no Brasil estudos sobre as telenovelas já começavam a ser publicados, ainda timidamente. Mas o ponto é, existiam pessoas interessadas no que esse estranho objeto poderia oferecer em temos artísticos, chamando atenção de pesquisadores e profissionais da área, além de empresários para as possibilidades que o meio televisivo ainda poderia oferecer.
A produção seriada televisiva nos Estados Unidos viu ali na virada dos anos 80 para os 90 um certo amadurecimento narrativo, ou para usar o termo proposto pelo pesquisador Jason Mittel em seu artigo Narrative complexity in contemporary american television, uma complexificação nas narrativas. O autor observa que em algumas produções policiais exibidas no final da década de 1980 havia indícios do uso da linguagem televisiva de uma forma inédita.
Claro que existem longos fios narrativos que podemos puxar para explicar essas mudanças de formas mais objetivas, porém comentarei brevemente alguns que mais dialogam com o texto. Na década de 1980 algumas propostas de séries começavam a desafiar o estilo simples que os espectadores e críticos estavam acostumados, trazendo novas nuances e possibilidades narrativas para a telinha. É o momento em que os profissionais da televisão se voltam para o próprio meio, trabalhando a própria linguagem televisiva em suas obras. As séries de drama policiais, gênero clássico na televisão estadunidense, começa a ganhar novos contornos, assim como as sitcoms, outro gênero clássico, revelando concretamente a força do autor roteirista como condutor das obras.
Se no cinema a valorização do diretor é central para a percepção de um filme, na tevê o roteirista assume esse papel, até porque é este profissional envolvido em todos os processos (ou deveria estar) — no Brasil em nossa produção seriada clássica, as telenovelas, acontece o mesmo, o roteirista, que ganha a alcunha de autor, é o grande responsável pela dimensão autoral das obras, basta observar os primeiros créditos “uma novela criada e escrita por…”. Séries como Twin Peaks, Seinfeld, entre tantas outras, marcam a primeira década dos anos 1990 como exemplos dessas novas possibilidades narrativas. As três emissoras de fluxo aberto ABC, NBC e CBS disputam o controle narrativo dando espaço para essas inovações acontecerem — na medida do possível-, mas as grandes rupturas acontecem mesmo quando as emissoras a cabo entram na disputa, principalmente a HBO e SHOWTIME lançando séries icônicas como The Sopranos, Six feet under, Queers as folks, Sex and the city entre outras.
É aí que Lost entra nessa história.
Lançada na grade de 2004 no canal ABC, a série nasce de uma encomenda da emissora para competir com o reality show Suvivor e também visando ampliar esse longo processo de complexificação. O piloto de Lost é o mais caro da história, os escritores exageraram nos elementos e locações sem saber muito bem o que esperar (sensação que parece ter guiado os autores até o fim), com o sinal verde e a aprovação do público rapidamente a série virou um fenômeno, dialogando com outras produções contemporâneas e ampliando a renovação da narrativa seriada na televisão estadunidense. A série é considerada um grande divisor de águas, um evento televisivo, algo que talvez não aconteça mais na era do streaming e com as mudanças na forma de consumo e recepção atuais.
No primeiro episódio assistimos o vôo 815 da Oceanic Airlines que partia da Austrália rumo a Los Angeles ser completamente destruído ao aterrar numa ilha misteriosa, vários dos seus passageiros acidentados buscam ajuda em meio ao caos desconhecido. Mas o que essa gente toda estava fazendo na Austrália? Por que nenhum sinal de salvamento chegava? De onde surgiu esse urso polar?! Os mistérios vão se adensando ao longo das temporadas, ajudando a criar uma relação intima com os fãs. Nesse momento histórico (2004) os novos modelos de comunicação que a internet possibilitava, a digitalização e globalização ajudaram a série a ser o fenômeno que conhecemos.
As discussões em fórum aproximaram ainda mais os fãs em torno de todos aqueles mistérios, a Lostpedia (espécie de Wikipédia voltada apenas para a série e mantida por fãs) talvez seja um dos exemplos mais claro dessa relação série-fãs. Porém, Lost não foi a primeira narrativa televisiva a formar grandes comunidades, na década de 1990, por exemplo, Dawson Creek já fazia algo semelhante usando as potencialidades iniciais da internet pré-redes sociais e antes disso Twin Peaks conseguiu manter seu legado durante toda a década de 1990, sem falar na britânica Doctor Who, clássica da década de 1960 que atravessa décadas de relação com fãs e Star Trek que praticamente funda essa relação. Mas Lost é a série que marca, ou melhor, acompanha um momento de mudanças, não apenas na TV, ou na internet, mas na forma de consumo audiovisual de modo geral. Como disse, talvez algo que nunca se repita na mesma proporção. (Game of Thrones talvez tenha sido algo que chegou perto nos últimos anos, inclusive sendo coroada com um final detestado pela maioria dos fãs).
Após a queda do vôo da Oceanic numa misteriosa ilha, os sobreviventes precisam lidar com situações inusitadas, como um monstro de fumaça que aparece sem maiores explicações, um barco recheado de explosivos, uma francesa presa na ilha há 16 anos e um grupo de pessoas que rapta crianças e mulheres grávidas sem maiores explicações. Assim que entendem que o resgate não chegará, o grupo precisa explorar o ambiente e entender de que forma poderão colaborar para a sobrevivência. Misturando flashbacks com o tempo presente percorrido na Ilha, a série constrói a relação dessa comunidade. A primeira temporada consegue despertar a curiosidade dos espectadores, causar empatia com as histórias do passado, transparecendo o melhor mecanismo de uma narrativa seriada complexa, o foco no desenvolvimento dos personagens e entregando excelente ganchos.
Na segunda temporada o foco é em apresentar novos passageiros do vôo 815, introduzir o grupo local conhecido como Os Outros e explorar ainda timidamente as noções de viagem no tempo, que serão melhor apresentadas nas últimas temporadas. O grande tema da série é apresentado já em seus primeiros episódios, a disputa entre fé e ciência, razão e emoção, representado respectivamente pelos personagens John Locke e Jack Shephard. Esse embate está permeado nas seis temporada e se intensifica na segunda com o plot da misteriosa escotilha e a obrigação de digitar os malditos números 4,8,15,16, 23,42 num computador sem saber exatamente o que isso significa. John acredita que a Ilha tem um propósito maior para cada um, já Jack reluta em aceitar qualquer faísca emocional, preocupando-se em salvar todos os amigos. No fim das contas nenhum dos dois se salva, mas entendemos que entre razões e emoções a saída é fazer valer a pena.
As duas primeiras temporadas me trazem uma sensação de introdução antes da discussão que realmente importa — ou melhor, sinto ser só na terceira temporada que se entende mais ou menos para onde esse avião descontrolado tá indo. Nessa queda de braço entre a fé cega e razão, a espiritualidade se espalha desde o início, mas ganha força principalmente na última temporada, mas é um fio narrativo que começa a ser puxado ali nos primeiros episódios da segunda e da terceira através do personagem Mr.Eko, que infelizmente tem sua trama condensada a pedido do ator que preferiu abandonar as gravações (muitos problemas de bastidores marcam a trajetória de Lost, o que para mim só mostra ainda mais a criatividade da sala de roteiristas em inventar novos rumos e até fazer piadinhas com as dificuldades).
Puxo de volta o ponto da renovação na televisão estadunidense para falar um pouco sobre Twin Peaks. Na série criada por David Lynch e Mark Frost o embate entre fé e razão também se faz presente de alguma forma, assim como viagem no tempo (muito mais presente na temporada do retorno lançada em 2017). Laura Palmer é a rainha do baile, a garota perfeita que para todos na cidadezinha representa a bondade pura, mas infelizmente o que poucas pessoas sabem é que Laura foi corrompida. Bob, uma espécie de demônio, ou representação do mal, assim como o Homem de preto/ Monstro de fumaça de Lost, prova um ponto ao se aproximar e desestabilizar a família Palmer. A questão de bem vs. mal parece ser algo que está no horizonte dessas duas séries.
Faço essa aproximação não apenas por ser um grande fã da obra de Lynch-Frost, mas por perceber muitas similaridades nas duas séries, principalmente na quinada espiritual. Lost segue um caminho voltado a ficção cientifica ao longo de sua terceira temporada, é nesse momento em que vai ao ar um dos episódios mais lembrados e celebrados, o momento em que é introduzido o flashfoward, revelando que as cenas fora da ilha que assistíamos como se fosse mais um retorno ao passado, na verdade, mostravam uma realidade futura. É a partir daí que a série brinca com as viagens no tempo introduzindo a trama dos Oceanic six, revelando os seis personagens que saem da ilha e passam três anos na realidade cotidiana vivendo suas vidas, até que a ilha, Jacob, os chamam novamente. Enquanto isso, a ilha se movimenta pelo tempo/espaço como se fosse uma tardis com defeito, levando os outros sobreviventes a consecutivas viagens no tempo, até se estabelecerem na década de 1970. Depois descobrimos que isso tudo não passava de um plano do Homem de preto/monstro de fumaça, uma forma de manipular a todos para conseguir alcançar seu grande desejo: sair da ilha. Acontece que sua saída representa a ruína do mundo, afinal ele é a representação do mau absoluto, assim como Bob em Twin Peaks ao corromper a amada e inocente Laura Palmer causando uma tragédia não apenas no mundinho dos Palmer, mas em todos que entraram em contato com a garota.
A meu ver, essas aproximações com questões espirituais que ambas as séries dão (salvo as devidas proporções), revelam uma necessidade de seus autores e equipe de roteiristas de romper com padrões estéticos narrativos televisivos e construir uma nova dimensão narrativa. Lembremos que lá em 1990 a mesma ABC que encomenda o piloto de Lost com sede de vingança e desejo de recuperar audiência investindo em algo fantástico, foi a mesma emissora que insistiu para Twin Peaks revelar o assassino de Laura Palmer, tentando encaixar a série em uma trama comum policial, o que sabemos que a série é tudo mesmo comum.
Nas duas séries há uma necessidade de através da construção de um mundo com regras particulares e de um dilema bem demarcado, convidar a audiência, acostumada a consumir outros produtos do gênero e saber muito bem o que esperar, a viajar ainda mais longe e principalmente, a não ter respostas concretas. (É preciso reconhecer que apenas uma das duas séries citadas consegue não responder perguntas de modo satisfatório. Laura who?). Recorrer a uma questão mais espiritualizada é o modo dos criadores e roteiristas se aproximarem esteticamente dessas famigeradas complexificações que outros autores criam de modos distintos.
Mas voltando a ilha misteriosa de Jacob.
Após as viagens no tempo que se encerram na quinta temporada, aterrizamos de vez nas questões de disputa entre o bem vs. mal com Jacob vs. Homem de Preto. A última temporada deixa um gosto amargo, tramas que pareciam tão promissoras se perdem em um sem fim de fabulações. Assistimos ao longo da temporada um mundo paralelo, que ao fim entendemos se tratar de uma espécie de purgatório, ou algo que se assemelha a uma versão clean da Red Room de Twin Peaks. Um lugar fora do espaço onde seres espirituais guiam a passagem para outros mundos, no caso dos sobreviventes da Oceanic, a vida pós-morte, já no caso do querido detetive que tenta desvendar a morte de Laura Palmer, o retorno a terra 25 anos após descobrir quem matou Laura Palmer.
O final das duas séries se assemelham em alguns pontos, mas diferem em tantos outros, a começar Lost escolhe manter um tom celebrativo, entendemos que o Homem de preto/Monstro de fumaça não consegue atingir seu objetivo de sair da Ilha e espalhar o mal. O lugar, com a ajuda dos escolhidos (toda ilha misteriosa tem os seus favoritos), manteve-se na sua função de servir como espaço sagrado onde a luz se mantém acessa e pura. (Agora o que diabos é e de onde vem exatamente e para quê serve essa luz? Não sabemos. A bondade abundante? Talvez. Uma saída narrativa bonitinha para manter a série como um grande evento televisivo e não frustrar com um final fechado? Provavelmente.)
Há bastante polêmicas em relação ao final de Lost. O último episódio, especificamente a última cena de créditos, gerou uma dúvida que segue até hoje: eles estavam todos mortos o tempo inteiro? A resposta é não, explicado pelo espírito do pai de Jack e Claire, que revela para o filho que todos seus amigos viveram suas vidas fora daquela realidade alternativa/limbo/purgatório que acompanhamos ao longo da sexta temporada. Um final bonito, emocionante, mas sem o grande impacto que todos esperavam e que marcou o desenvolvimento da série. Nessa minha reexibição particular me perguntava sempre como a equipe de roteiristas poderia finalizar todo aquele vai e vem do tempo, responder satisfatoriamente os principais mistérios (acredito que num tipo de série como esse, ter todas as perguntas respondidas seja algo irrelevante) e fechar a trajetória dos personagens, afinal um dos principais elementos da série era a relação dos personagens. Apostar na quebra de braço entre fé vs. razão e levar isso ao extremo talvez tenha sido a solução mais acertada, mas confesso que ainda assim sinto um gostinho amargo.
Algo que não posso dizer em relação a Twin Peaks, que após a longa espera de 27 anos, retornou para a tevê com uma temporada excelente, que tem o grande objetivo de não responder a nada e não servir de fã service para a grande comunidade de fãs. A aposta nessa relação espiritual também é colocada de um modo mais aberto, assumo ser totalmente minha interpretação.
A renovação na televisão estadunidense é amplamente estudada, aqui neste texto trouxe apenas um resumo pequeno para pensar um pouco sobre a construção narrativa de Lost. Comparo a série com Twin Peaks não apenas pela relação que se faz na minha cabeça sobre a quinada espiritual, mas pela aproximação em relação ao interesse dos fãs ao longo dos anos, fazendo com que ambas as séries continuem aclamadas décadas depois do seu encerramento. Sendo que ambas representam um momento importante na televisão dos Estados Unidos (claro que outras séries contemporâneas também são super importantes, mas vamos abstrair aqui), e as duas se transformam em algo muito maior do que a necessidade de obter respostas, seja para saber quem matou a nossa rainha do baile perfeita ou o que esse bando de maluco tá fazendo numa ilha sem localização conhecida onde um bilionário trava uma batalha para conseguir chegar lá? O universo fantástico mantido pelos personagens e suas relações é muito maior do que qualquer pergunta sem resposta, por isso entendo a solução encontrada em Lost. Lynch em sua terceira temporada exibida originalmente no canal a cabo Showtime teve mais liberdade em manter a dúvida no ar, encerrando a sua obra com um grito que ecoa em nossos ouvidos até hoje.