“We have to go back, Kate. We have to go back!” uma revisão sentimental de Lost ou minha vida vivida através da televisão, um caso de amor.
esta é a parte um de um texto dividido em duas partes.
Passei os últimos meses reassistindo Lost, a maratona despertou vários pensamentos e da necessidade de conversar sobre a série nasceu esse texto, que passa por minhas lembranças do período em que assisti à série pela primeira vez, até discussões sobre alguns elementos da narrativa que me chamam atenção. Mas antes de entrar no universo criado por J.J. Abrams, Jeffrey Lieber e Damon Lindelof, revisitei algumas outras ilhas que me acompanharam no meu percurso de paixão pela televisão. Acabou que o texto ficou muito grande e dividi em duas partes, uma mais sentimental e uma segunda mais ensaística sobre, enfim, a série Lost.
Depois que os pratos e panelas estavam devidamente lavados e enxutos, depois que o docinho pós-almoço assentava no estômago despertando a preguicinha da tarde, os quatro ocupavam seus lugares ao redor do velho aparelho de tevê. O mais velho dos três filhos e mais alto, impunha sua autoridade se esticando no sofá menor, não deixando espaço para que os outros sequer pensassem em dividir o lugar. Os outros dois se exprimiam ao lado da mãe no sofá maior e mais espaçoso, mas ainda assim eles se apertavam como se a salvação do mundo dependesse disso. Em frente a eles a telinha pequena se iluminava, na ponta da antena um pedaço de bombril parecia não cumprir muito bem o seu papel, deixando passar alguns chuviscos, mas era suficiente para aquecer o coração dos quatro. O controle é acionado bem a tempo dos para-para-para-para ritmados começar a tocar, revelando o início do programa favorito de todos naqueles dias. Em breve os dois mais velhos iriam sair, explorar o mundo, conversar com os amigos, o mais novo continuaria ali pelo resto do dia, intercalando as imagens assistidas com as imagens inventadas. Em breve, os três não iriam estar mais ali, nunca mais, restando ao mais novo uma fotografia presa na memória e projetada na telinha de uma tevê que só ele assiste. Aqueles minutos que passavam ali no início de cada tarde era o momento de trocas familiares mais duradouro que conseguiam manter. Regados as tramas de Manuel Carlos no Vale a pena ver de novo, onde uma Helena histérica gritava com Joyce, sua filha atrevida, fazendo com que do outro lado da tela a mãe falasse para os três como eles eram iguais à filha atrevida de Helena. Era uma brincadeira, eles sabiam. Esse retrato ficou gravado para sempre na memória do mais novo, o único que restou nessa sala e que continua em frente a tevê encantado com a efusão de imagens. E que de alguma forma ainda busca em tudo que assiste pela telinha o conforto familiar há muito perdido.
1.
Desde que me entendo por gente, sentar em frente a televisão e admirar as imagens que se atropelavam uma atrás da outra naquela telinha era o mais próximo de um ato sagrado que eu conseguia realmente entender. Talvez a mesma relação que muitos têm com o Cinema, eu tive primeiro com aquele objeto estranho que ocupava a centralidade da minha sala. Daquela caixinha quadrada, tão pequena considerando sua dimensão real, mas imensa nas possibilidades, surgia diante de meus olhos curiosos o mundo, não apenas o real, mas os fantásticos. Foi em frente a tevê que pude imaginar um futuro para mim.
Talvez a televisão não tenha tido tanta importância assim em minha formação. Mas, a partir de uma revisão histórica particular, esse objeto conquistou não apenas a centralidade de minha sala, mas também de minha vida. Não sei mais falar sobre mim, sem falar dela. Não tenho certeza se essa relação é real, ou foi inventada como ficção aqui e agora — ou em qualquer situação onde foi preciso responder à pergunta: por que você foi estudar cinema?
Ali, na virada dos anos 1990 e início dos anos 2000, antes do abalo sísmico que mudaria minha vida para sempre, a rotina das férias eram sempre muito parecidas. Eu e meus irmãos ficávamos em casa, minha mãe ainda trabalhando, geralmente pegando férias um mês depois da gente. Como eu era o mais novo, contava com o apoio de minhas tias ou das vizinhas nos cuidados nesses períodos sem aula. Isabel era a vizinha de frente, avó de Claudia, minha amiga mais antiga, esse fator transformava a sua casa no lugar ideal para passar essas tardes de férias, brincar com minha amiga sob o olhar de alguém de confiança. Mas, o que mais me atraia a passar as tardes lá era a possibilidade de assistir ao Vídeo Show e o Vale a pena ver de novo com os comentários sempre sagazes de Isabel. Ao rever as novelas antigas ela falava do tempo em que as tramas foram exibidas originalmente, como era sua vida, como a cidade de Aracaju se organizava naquele momento histórico, às vezes soltava o final de todos os personagens, outras confundia o trabalho de um ator em uma novela com outra que estava sendo exibida em simultâneo. Ela não tinha um método específico de rememoração, apenas falava o que vinha a mente. Eu adorava ouvir suas histórias e de alguma forma a realidade dela se entrelaçava com as realidades exibidas na telinha. Roque Santeiro é esse fenômeno que conhecemos, mas para mim o grande diferencial da novela é a versão exclusiva com os comentários de Isabel, que faziam os personagens crescer 100% na minha imaginação.
Uma das novelas exibidas ali naqueles anos de formação televisivo foi Corpo Dourado. Não lembro a trama principal, e para efeitos desse texto não irei consultar o site Teledramaturgia.com para saber melhor, me atentarei somente a uma trama paralela que me marcou muito: um grupo de crianças chega a uma ilha — ou cidade praiana-, e precisam resolver um mistério, o pai delas morto deixou umas fitas cassetes gravadas com mensagens misteriosas. As crianças se envolvem em uma caçada por esse lugar misterioso, aprendendo muito sobre a vida e a troca entre grupos diferentes. Assistir essa trama nas minhas férias trancado em casa iluminou minha cabecinha infantil, e munido de papel e caneta viajei até essa ilha misteriosa me colocando no lugar dos personagens. Essa situação é uma das possibilidades de respostas quando ouça a pergunta do porquê fazer cinema e amar tanto novela e se especializar em roteiro? O que assistia imediatamente se transformava em combustível para minha imaginação, que criava no papel aventuras por essa ilha/praia misteriosa. Nesses momentos eu conseguia me transportar para vários universos.
Além das tardes imerso na programação da Rede Globo, o canal Cultura era uma dimensão misteriosa onde subitamente eu me deparava com produções malucas que mexiam demais comigo de um jeito que nenhum outro objeto artístico conseguia. X-Tudo, os peixonautas, Rá-tim-bum, Castelo rá-tim-bum, me faziam ficar colado na frente do aparelho absolvendo aquelas loucuras e imaginando aqueles mundos como reais. Mas nenhuma dessas produções chegou perto do impacto que Ilha Rá-tim-bum trouxe para minha vida. Jovens crianças se perdem numa ilha no meio do nada depois de não conseguirem chegar ao barco que os levariam para uma apresentação musical. Ao chegar nessa Ilha criaturas estranhas os recebem e eles descobrem serem escolhidos em uma missão fantástica: derrotar o grande vilão que deseja viver eternamente e destruir a terra. Para derrotá-lo é necessário a sagacidade e expertise de cada um, pois unidos com os habitantes daquele mundo, eles poderão derrotar o grande vilão Nefasto. Ilha Rá-tim-bum também despertou meu interesse por viver aventuras naquele universo, eu sonhava com os personagens, eu ficava aflito para saber como eles conseguiriam derrotar o grande vilão e sair daquela Ilha louca. Além de escrever historinhas nos meus cadernos de escola, também organizava brincadeiras com meus amigos na hora do recreio, reproduzindo as aventuras que via na tevê.
Essa história me pareceu bastante familiar, logo lembrei do grupo de crianças que acordam em um mundo estranho, no primeiro momento também uma ilha, ao lado delas bichinhos fofinhos os esperam com a missão de protegê-los contras pavorosos monstros. A medida que o pavor aumenta, os bichinhos fofinhos evoluem, os mistérios também até que descobrimos que esse tal mundo é o mundo digital, e essas criaturas fofinhas são os digimons e as crianças que caíram misteriosamente nesse universo são digiescolhidos para deter as forças do mal. Digimon estreou na televisão brasileira em 2000, nas férias escolares, eu com apenas 8 anos fiquei completamente apaixonado assim que terminei de assistir ao primeiro episódio, ao ponto de não querer nunca sair desse mundo virtual. A solução encontrada foi escrever as minhas aventuras ao lado de Tk e Kari e companhia, em folhas soltas de cadernos. Eu não sabia naquele momento que estava escrevendo fanfictions, também não sabia que estava nascendo ali a semente do roteirista e escritor que me tornaria nas décadas seguintes. Essa é uma das respostas da pergunta no início desse texto.
Lá no início da graduação, quando começaram a fazer a pergunta do porquê estudar cinema, ainda mais no menor estado do Brasil sem nenhuma perspectiva de conseguir um emprego, eu comecei a viajar internamente por minhas referências audiovisuais. Foi estranho perceber que diferente de meus colegas, que tinham o Cinema como farol, o grande culto em comum, eu tinha a televisão como paixão e grande referência. Uma delas a própria série Lost, que me acompanhou durante o ensino médio. É claro que naquela altura, ali por volta de 2010, as séries estadunidenses eram os produtos que mais consumia e meu principal foco de inspiração e estudo. Mas, ao resgatar em minhas memórias, comecei a perceber um padrão de obras que mais despertaram o desejo de criar algo, todas elas tinham um ponto em comum: um grupo de personagens desconhecidos um do outro, mas com qualidades que ajudam a vivência em grupo, se perdem em um mundo estranho que necessita das qualidades pessoais de cada um. Percebi que voltar as ilhas de minha formação referencial era algo sempre necessário, não apenas para entender o uso das referências na construção de novas narrativas, mas também para me entender melhor.
Percebo agora que essas ilhas da ficção que despertaram o desejo da escrita audiovisual televisiva podem se resumir a ilha da minha infância. Mundo que durante boa parte da minha vida adulta evitei voltar com receio do que poderia encontrar. Assim como esses grupos de personagens em suas aventuras percebem que essas ilhas/mundos, são sempre o ponto de partida que eles precisam para conseguir viver, eu também entendi essa relação, que talvez nem faça lá tanto sentido assim. Percebo que minha ilha particular infantil se projeta de uma tela de televisão, a memória feliz em família, o despertar da imaginação, o interesse pelo mundo fora da minha cabeça, tudo parece está projetado numa telinha de tevê que está sempre sintonizada com minhas necessidades para seguir em frente.
Revendo Lost nesses últimos meses pude peceber algumas relações que ultrapassam as questões da narrativa. Sentimento que já havia notado quando revi como adulto os outros produtos que citei ao longo do texto. A sensação de que os ensinamentos que colhi dessas obras, me acompanharam ao longo da vida sem que eu notasse, me pegando de surpresa ao dá o play em cada episódio. Ou melhor, ao voltar a ilha depois de um longo tempo fora dela e perceber que ela nunca saiu de mim.
Não sei exatamente pq, mas dei uma boa gargalhadinha quando li digiescolhidos