Um homem de cabelos longos observa através de uma câmera a faixada da casa 240.
No dia sete de janeiro de 2011 foi divulgado o resultado final do vestibular da Universidade Federal de Sergipe, instituição onde décadas antes minha mãe e minhas tias estudaram. Enquanto buscava por Ramos em meio a uma imensidão de listas (me recusava a usar o atalho CTRL + F) imaginava como elas, as primeiras mulheres da família a ingressar no ensino superior, se sentiram quando encontraram seus nomes na lista no jornal, ou será que ouviram numa transmissão de rádio?
RAMOS.
Encontrei meu nome afirmando haver sido o sétimo colocado no curso de comunicação social com habilitação em audiovisual. Eu ainda não sabia muito bem o que vivenciaria nesse curso, nem como as experiências que me aguardavam nos próximos quatro anos moldariam minha vida, mas alguém acreditava muito mais nesse momento do que eu, a minha avó Maria Barbara Ramos.
Nessa época era bastante comum as escolas presentearem os alunos com uma faixa informando a aprovação no vestibular. As faixas ficavam expostas na frente das casas dos aprovados exibindo o nome, o curso, e o parabéns da escola, era uma vista comum nos janeiros de Aracaju. Eu particularmente achava essa tradição ostensivamente sustentada por escolas particulares, muito brega, mas minha avó se orgulhava do neto recém ingresso no ensino superior e exibiu com bastante orgulho a minha faixa até meados de julho, quando eu mesmo já não esperava muito do curso que acabara de entrar.
Victor Adriano Ramos - Aprovado em Comunicação Social Hab. Audiovisual 7ª Lugar. Colégio Águia, vestibular UFS 2010.
Me incomodava ter a tal faixa na frente da casa de minha avó, na rua onde nasci, onde minha mãe e minhas tias nasceram, onde todos os meus primeiros amigos nasceram e viviam, onde todos os vizinhos me conheciam desde o nascimento, onde por 14 anos morei, onde minhas raízes se misturavam ao pé de sapoti no quintal de minha avó. Eu já não morava mais lá, mas voltava todos os domingos para o encontrão familiar, e dali via a tal faixa alheia a ação do tempo. Nesses encontros eu sempre insistia na retirada da faixa, mas minha avó sempre comentava alguma coisa e sorria mostrando o orgulho do ato que aquele tecido amarelado representava, e eu ia deixando pra lá, era uma briga vencida. A faixa só foi removida em julho quando nem mesmo o tecido resistiu a ação do tempo e se rompeu. Mesmo assim ela guardou o que restou no quintal.
Olhando para trás percebo o quão besta foi esse incômodo. Quando voltei a morar nesta rua, minha avó já tinha falecido há alguns anos. Sua casa, que era um dos seus grandes orgulhos, já estava há bastante tempo fechada, mantínhamos as plantas do jeito que ela gostava, mas ninguém se atreveu a mudar nada de lugar ou tomar uma decisão definitiva sobre o imóvel. Doze anos se passaram desde sua morte e a casa permanece do mesmo jeito. Da minha casa, posicionada estrategicamente em frente a 240, observo os resultados da ação do tempo. Toda vez que olho para a casa, agora já apagada, seja pela tinta, seja pelo fim do brilho da dona, lembro da faixa se apagando em meio a chuva e sol. Lembro do nome Ramos estampando um orgulho, lembro do sorriso de minha avó ao presenciar mais uma geração entrando na universidade pública. Nosso sobrenome conquistando mais lugares que talvez há algumas gerações pareciam coisas impossíveis.
Agora que a graduação já passou, o mestrado também e o doutorado já quase anuncia seu fim, volto a pensar naquela faixa pendurada por seis meses na fachada da casa 240. Penso no sorriso de minha avó ao ouvir a notícia de minha aprovação, me pergunto o que ela sentiu naquele momento? Não preciso me esforçar muito pra saber a resposta. Quando penso nas histórias que minha mãe me contava das dificuldades em se manter estudando na universidade federal sem condições financeiras, aquela faixa ganha um peso maior em minha memória. A visão do passado se entrelaça no tempo e se na ocasião me senti encabulado por ter meu nome estampado para todo o Santo Antônio ver, achando a coisa mais brega do mundo, hoje só consigo pensar no orgulho de minha avó, que se estampava no esforço materializado na casa 240.
Minha avó era uma mulher extraordinária, vivia com um sorriso estampado no rosto, ao mesmo tempo, em que facilmente conseguia se debulhar em lágrimas ao lembrar dos entes queridos que partiram. Ela sempre dizia que no dia que morresse queria que o velório fosse na garagem de sua casa, queria que todos os amigos e pessoas que a conheciam pudessem se despedir dela. Ela dizia que como sempre ficava sentada na garagem e via a movimentação das pessoas indo e vindo e parando para falar com ela, em sua morte gostaria que as pessoas tivessem a mesma sensação. E assim fizemos. Se despedir dela naquele momento também marcava a despedida da 240, que apesar de existir na materialidade, não existe mais no sentimento.
Demorei para entender essa relação com a casa. Demorei a entender a demora em remover aquela faixa brega, me envergonhava em ter meu nome estampado no meio da rua. Demorei a me interessar pela história da nossa família, que se confunde com a de tantas outras famílias. Ter o nosso sobrenome estampado na frente da 240 atestando uma conquista, que não era só minha, mas de todos da família. Eu não entendia que essa casa representava não somente um lugar de conforto para minha avó, mas a materialização de uma realização, de conquistas, não só para ela. Eu não entendia que poder encontrar meu nome naquela lista significava um esforço que começou lá atrás. Na década de 1930, quando meu bisavô comprou o terreno e começou a construir a casa, mas de antes disso, anterior a quando os registros conseguem constatar.
Os seis meses que aquela faixa ficou pendurada na frente da 240 representava para minha avó e para todas as que vieram antes dela e todas que vieram depois, uma conquista. Estampar isso na faixada da casa era a materialização de um esforço muito maior que eu, que a casa, que nós.
Espero poder honrar isso.
o astronauta da saudade
Estávamos em pé em frente a vários objetos de sua estima, ela os mantinha em um cômodo da casa especialmente reservado para este fim. Lá também mantinha o estoque mensal de alimentos, produtos de limpeza e outras coisas para a manutenção do lar, estes ficavam numa estante de ferro em frente a porta de entrada. O que me interessava mesmo eram os objetos espalhados por várias outras estantes acomodados por toda a extensão do quartinho em formato de