pequenas viagens no tempo.
no dia das bruxas te convido a fazer uma viagem no tempo, do passado, desejo que os tempos assustadores fiquem enterrados de vez e que hoje seja um dia de alegria.
Em algum momento da infância, essa ilha de vastos sentimentos, criei uma janela para o futuro em forma de memória. Vira e mexe me pego pensando nisso, revejo a cena que criei do alto da minha inocência. Nessa memória do futuro, um victor na casa dos trinta e tantos anos sobe uma escada rolante. Ele veste terno escuro, não consigo ver seu rosto com nitidez, mas uma espeça barba se destaca. A escada rolante continua seu movimento, ao redor lojas se destacam, pessoas conversam, andam para lá e para cá, parece um shopping ou uma galeria movimentada. Em seu percurso, o victor do futuro apenas continua subindo a escada rolante. Não sei que lugar é esse, não sei para onde ele está indo, não sei quais problemas o afetam.
Eu estava provavelmente na terceira ou quarta série quando fui invadido por essa memória pela primeira vez. Era o início dos anos 2000, quando as coisas ao meu redor começaram a se mostrar não tão seguras assim. Power rangers força do tempo (a minha temporada favorita) embalava meus horários de almoço. Os enredos de senhores do tempo e buracos de minhocas no universo chegavam até mim traduzidos por meu irmão e se transformavam em uma possibilidade real. No caminho de ida e volta para a escola, um pensamento recorrente me invadia, o que estaria acontecendo com os outros victors espalhados em outras dimensões? E o victor do futuro como será que é? Será que ele existe de fato? Absolvia tudo o que thiago me dizia como verdades absolutas, não sabia que Arthur C. Clarke e Philip K. Dick eram os responsáveis por tais histórias.
Imaginar as diversas possibilidades do futuro passou a ser um exercício frequente, era minha forma de desvincular da realidade e ir em busca de conforto em outra temporalidade, onde tudo estaria resolvido. Apenas o fato de estar situado em outro tempo me colocaria em um profundo estado de segurança. Sem perceber fui nutrindo essa estranha memória, aguardando o dia e que me transformaria naquele victor que sobe a escada rolante alheio a movimentação ao seu redor. Me perguntava quem ele seria e quais respostas teria encontrado nos anos que nos separavam. Me pegava em alguns momentos ansiando por chegar nesse momento e ter tudo resolvido, seja lá o que isso significava.
Sou uma pessoa nostálgica, gosto de rever fotos, reler cadernos antigos, reimaginar situações. Estou sempre indo ao encontro de outras versões de mim mesmo, não sei até que ponto isso é saudável, ao menos funciona como combustível para a criação. O período de isolamento da pandemia intensificou ainda mais essa sensação. Estar o dia inteiro, a semana toda nessas mesmas quatro paredes em frente a uma tela que hora exibia aulas, hora exibia novelas antigas, hora exibia o sorriso distante e meio triste dos meus amigos enquanto bebíamos cerveja e tentávamos nos segurar no único fiapo de esperança que tínhamos no momento, as recordações de tempos alegres, fez com que a busca pelo passado ficasse ainda mais intensa. Passei a viajar no tempo, atravessar meu próprio buraco de minhoca particular rasgando o universo e me colocando de frente aquele victor que imaginou um dia uma escada rolante.
No período de falta de novelas inéditas no horário das 21h, a Globo escolheu reprisar Fina Estampa. Me recursei a acompanhar a trama diariamente, mas alguns sábados, enquanto ligava a TV por distração e via Crô e companhia distilando o texto meio fora do tom de Aguinaldo Silva (sou fã mas tudo tem limite), me peguei novamente nos meus sábados de dois mil e onze. Estava de novo sentado na mesa da sala de minha avó enquanto ela sentava em sua cadeira de balanço e reclamava da novela. Conseguia ver de longe aquele victor angustiado com o início da universidade, sem saber muito bem como lidar com as novas situações. Na atualidade eu era um victor angustiado com o primeiro ano do mestrado, sem saber muito bem como lidar com as situações que se apresentavam agora num mundo virtual apocalíptico. Rever esse victor me dava um certo conforto. É aquele conforto de olhar o passado e mesmo ele tendo sido um horror, existe alguma segurança por já te passado.
Em julho do primeiro ano pandêmico, a globloplay disponibilizou na íntegra um dos maiores sucessos da teledramaturgia brasileira, Vale Tudo (quem matou Odete Roitman?) salvando assim minhas noites. Pude acompanhar pela primeira vez as desventuras de Maria de Fátima em busca de vencer na vida. Em uma noite de novembro assistia ao capítulo que havia sido exibido há exatamente trinta e dois anos, naquela mesma data. Embarquei de novo numa viagem no tempo, naquela mesma sala a exatamente trinta e dois anos assistíamos as mesmas cenas, no mesmo horário. A disposição dos móveis não era mais a mesma, a casa passou por algumas mudanças, as pessoas também não eram mais as mesma, eu não existia naquele cenário em 88, e todos que estavam lá naquela sala, não estavam aqui em 20. Mas eu pude vê-los, minha mãe jovem e cansada com duas crianças, uma recém-nascida, meus irmãos. Minha tia-avó, não muito afeita a televisão, provavelmente deveria estar dormindo, acordaria cedo no outro dia para trabalhar.
Enquanto uma regina duarte completamente fora da realidade gritava com a filha golpista, me vi ali nos anos 80 em meio a crise politicas, que se repetiam na minha atualidade. Me vi em meio a inseguranças de diversos níveis. Vislumbrei a mesma sala três décadas atrás. Será que a voz de Gal Costa entoando o hino brasil mostra a sua cara ressoava por aquelas paredes? Em minha viagem sim. Eu não tinha uma máquina do tempo, não tinha uma TARDIS para explorar as diversas possibilidades do espaço-tempo, munido apenas de pedaços de memórias e da potente narrativa criada por Gilberto Braga, Leonor Basséres e Aguinaldo Silva, consegui viajar no tempo.
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Nos meses que antecederam a pandemia resolvi começar a escrever um diário. Meu intuito era capturar o tempo o máximo que conseguisse. Depositava nas páginas de modo claro e preciso tudo que acontecia ao longo dos dias, pensava principalmente no victor do futuro, a possibilidade de ler aquelas páginas e voltar ao passado de alguma forma. Na virada do ano queimei o caderno de capa azul de um jeito um tanto quanto dramático. Minha intenção era apagar uma parte do victor da pandemia. Me dar uma chance de alguma forma de deixar o passado escapar, entendi que aquele momento capturado não valia a pena se lembrado no futuro. Voltei alguns meses depois com outro diário, dessa vez não tenho a intenção de capturar apenas o tempo, mas os sentimentos por detrás de sua passagem.
Hoje já sou aquele victor que sobre a escada rolante da minha imaginação. Ao acessar essa memória vou ao encontro do victor que o imaginava. Tenho feito diversas viagens ao passado em busca de dialogar com essa minha versão, tentando entender o que ele esperava, qual destino imaginava chegar após o desembarque na tal escada rolante? Era apenas um passeio pelo shopping? Vagueio em busca de respostas nas galerias de minha memória, tal qual o doutor em Doctor Who, tento criar uma linha onde seja possível unir os diferentes tempos e extrair algo desse encontro. Como falei, não sei se ela relação tão intensa com o que passou é saudável, por hora penso que é necessário até um certo ponto. Um movimento sankofa, voltar para ir. Mas também perceber que tudo caminha lado a lado, como nas histórias de ficção cientifica que meu irmão me contava como histórias verdadeiras.
O trilim lim lim da urna eletrônica também funciona como um dispositivo de volta ao passado, a lembrança de votar no lula pela primeira vez junto com mainha, mas também é uma forma de iluminar o futuro, sair das trevas que foram esses últimos quatro anos de desgoverno. Daqui da linha temporal em que escrevo ainda estamos em meio a ansiedade, o desejo de ver Lula eleito ainda está num futuro. Daí de onde você me ler espero que as coisas já tenham dado certo. Espero que seu ontem, meu amanhã, seja igual aquele mesmo domingo de 2002 e que os tempos tenham se alinhado e a mesma festa e alegria possa/pôde ter conquistado o Brasil. Que possamos voltar a sonhar com o futuro.
“Outra maneira simples de entender esse conceito é pensar no tempo como um livro. Quando você pega um livro, toda a história escrita está lá, na sua mão. A gente lê uma página depois da outra, de forma linear e, assim, tiramos sentido desse amontoado de palavras. Se estivermos no meio do livro, podemos pensar no que já lemos como passado e no que vamos ler como futuro, mas sabemos que isso diz respeito apenas à nossa perspectiva. Todas as páginas existem ao mesmo tempo. Talvez a realidade seja assim, e é a forma como a compreendemos que é fragmentada.”
Micael Bretas na edição “V - sobre o tempo, enquanto tema” na newsletter baseado em fatos fictícios.
“Mas isso não é tudo; segundo análises, a água que estou vendo diante de mim caiu em forma de neve no monte Shasta há mais de cinquenta anos.”
Carol Bensimon na edição “Nevoeiro #2” da sua newsletter Nevoeiro.