a beleza do cotidiano, a possibilidade de sonhar.
a sala de estar nos anos noventa/dois mil, o filme marte um e a possibilidade do sonho a partir do cotidiano, e primeira eleição: 13⭐.
1.o cotidiano: a sala de casa, final dos 90/início dos 2000.
No centro da sala, ocupando o lugar de maior destaque, uma televisão. Daquelas de tubo quadrada, a tela pequena borrava um pouco a imagem, o áudio também não era lá essas coisas, mas possibilitava ouvi as já familiares notas de “palpite” mega hit de Vanessa Rangel que marcavam as vinhetas de “estamos apresentando” e “voltamos a apresentar” de Por amor - a MAIOR novela de Manoel Carlos. Do sofá uma família se reunia para assistir às desventuras de Branca Letícia de Barros Mota, assim como muitas outras ao redor do Brasil. Naquela casa esse não era apenas o momento de assistir à novela, não. Era também o momento de troca afetiva.
Eram nessas ocasiões que todos conseguiam conversar, ainda que em um momento ou outro a atenção fosse desviada pela intensa emoção melodramática - que muitas vezes também dava as caras naquela sala. Dos corpos posicionados entre sofás e cadeiras se formavam as conversas sobre o dia-a-dia, indagações sobre o que havia aprendido na escola, recomendações para o dia seguinte, broncas sobre algo que apareceu misteriosamente quebrado na cozinha, comentários sobre possíveis viagens para aquelas paisagens redentoras. Mas principalmente era o momento de projeções de sonhos, de todos os integrantes, e de alguma forma tudo se integrava e virava uma paisagem naquela telinha.
2.a arte em busca do cotidiano.
Recentemente fui ao cinema assistir ao elogiadíssimo Marte Um (dir. Gabriel Martins), nosso representante por uma possível vaga do Brasil no Oscar. O marte um do título é em alusão a uma missão de colonização do planeta vermelho que ocorrerá nos próximos anos. A missão extraordinária chama atenção do jovem Deivid que sonha em ser astrofísico, mas esse não é o futuro que seu pai espera, seu sonho é ver o menino no hall dos craques jogadores de futebol, dessa forma toda a família triunfará. Inicialmente a única que acredita no sonho tão distante do rapaz é sua irmã, Eunice, quem também de uma forma mais pé no chão, planeja alcançar novos planetas. No centro, uma família e sua luta para manter tudo em pé, mesmo enfrentando várias desordens sociais.
Uma das várias cenas que me deixou emocionado é quando mãe e filha conversam em meio a louças do jantar na pia sendo lavadas. Pai e filho não estão no cômodo, a filha questiona a ausência dos homens nos serviços domésticos, cobra a presença deles, apela pro cansaço da mãe. A mãe se irrita, fala que é assim mesmo, que mantém a ordem de tudo e que assim são as coisas, ela não está reclamando. É uma cena comum, lavar os pratos, algo tão banal que passa até batido. A indagação do diálogo tão certeiro atinge em fundo não só pela crítica, mas pelo cotidiano envolto na situação. É a minha família ali refletida, o sentimento se acentua por de fato ser uma família negra em tela. A câmera captura a pele preta não em situação de risco social - as famigeradas cenas de violência gratuita, tão comuns em filmes denunciatórios-, mas no extremo cotidiano, no passar dos dias, nas pequenas resoluções diárias, nos conflitos internos refletindo o macro.
Em outra cena o pai conversa com um colega do trabalho, fala que a filha com certeza teria reclamado de uma situação que aconteceu ali, com o senso de justiça que tem. No mesmo cenário, em outro momento, ele fala do orgulho que sente do filho, como joga bem, comenta sobre o desejo de fazê-lo um jogador profissional. O filme vai nos apresentando seu conflito, ainda muito pautado no cotidiano, se desenrolando nesse vai-e-vem diário. Marte um se vale principalmente desses momentos corriqueiros, extraindo o máximo de beleza deles. Em um jantar pai e filha discutem, ela diz que não quer casar, tanto pai quanto mãe soltam seus comentários. É em outra mesa, dessa vez em meio ao jogo de cartas, que ela informa a saída de casa: vai em busca de explorar seus próprios planetas. E é em meio a uma partida de futebol, vista em um televisor posicionado no centro da sala, com o enquadramento ilustrando bem os bibelôs e outros produtos abaixo da tela, que a revelação da relação de sua sexualidade é realizada. Os conflitos dessa família é apresentado pelas relações que ganham forma através do cotidiano.
A conexão entre os irmãos é percebida pelo apoio dela em apostar no sonho do garoto de explorar marte, de ser um astrofísico, mas principalmente, ela apoia o desejo de transgredir a realidade imposta e ir em busca de voos ainda mais longos. É lindo ver a cumplicidade dos dois, o carinho percebido nos detalhes. No filme “Ela volta na quinta” da mesma produtora, a Filmes de plástico, essa relação íntima, familiar entrelaçada ao cotidiano já se mostra de forma bastante evidente e bonita se repetindo em “Temporada” ambos dirigidos por André Novais.
Em “Temporada” o cotidiano é ainda mais presente, somos espectadores de ações corriqueiras. A chegada no trabalho novo, a adaptação, os problemas de relacionamentos. Ouvimos as conversas, nos misturamos aquele dia-a-dia da personagem, que também está se adaptando a esse novo universo. Esses filmes me parecem um convite a sentar por algumas horas e entrar numa frequência de tempo diferente dessa loucura de redes sociais e timeline infinita, um convite para observar as pequenas partes da vida, não seriam essas partes justamente as mais importantes? Marte um ainda potencializa essa relação nos brindando com o poder do sonho, a capacidade de explorar outros universos nessa construção miúda.
o cotidiano
tem uma beleza própria
onde nada parece acontecer
tudo nasce
da newsletter instante perecível de Bruna Roisenberg
A saga de Karl Ove Knausgard dividida em seis volumes, cada um com quase 800 páginas, reconta toda sua vida, a memória e a ficcionalização se misturam em personagens reais. O que mais me chama atenção na leitura são as cenas do dia-a-dia. No terceiro volume “A ilha da infância” o autor nos envolve na miudeza cotidiana de uma criança, as brincadeiras, as aulas, a relação intensa com o pai. São situações corriqueiras como a mãe que acidentalmente compra uma touca de natação com florzinha para o filho que acha esse item feminino e decide não usá-lo, mas é obrigado pelo pai. Ou a votação para representante da sala de aula em que o único voto que ele recebeu foi o dele mesmo, mas claro que ele nunca admitiu isso, até colocar no papel.
Karl Ove nos convida a olhar com mais delicadeza para o cotidiano, mostrando que a verdadeira grande história da vida acontece através desses momentos. Os volumes ilustram a saga de um escritor em busca da apreensão metódica do seu mundo, de um homem em busca de entender a influência do pai em sua existência. Para mim, a resposta que ele encontra está nessas pequenas passagens do dia-a-dia.
Em marte um os detalhes do dia-a-dia contam uma história muito maior, construída a partir desses momentos banais. A família reunida em frente a televisão em dia de jogo, ou em volta da mesa jogando uma partida de cartas. São nesses momentos que tudo parece se movimentar, ainda que nos detalhes. Todos os personagens têm uma vida fora dessa casa pequena, e todos voltam a esse lugar e é na troca, em meio as atividades corriqueiras, que tudo parece se encaixar. O garoto convida todos a partilhar por um momento o seu sonho, um telescópio construído de pedaços de outros objetos do dia-a-dia, parece revelar a todos a potência do sonhar juntos, assim como tudo o que essa família faz.
3.brilha uma estrela no cotidiano de um povo ⭐
A primeira vez que apertei 13 na urna eletrônica eu nem tinha sequer idade para votar, entrei na cabine com mainha. Aquele era um momento importantíssimo para ela, depois de uma campanha acirrada e animada, com vários comícios, vários encontros, muitos abraços trocados pelas avenidas de Aracaju, muito correr atrás de Lula e Déda nos encontros, o momento havia chegado. Me senti muito orgulhoso de apertar aquelas teclas, escutar o barulhinho, ver o sorriso de mainha. Não entendia absolutamente nada que estava acontecendo, só sabia que nos últimos meses o ar estava impregnado de uma onda de esperança. O Brasil ia mudar. Sergipe ia mudar. Nossas vidas iam mudar. Eu não entendia nada, mas andava pra cima e pra baixo com a estrela no peito, meus cadernos da escola, lembro até hoje, eram preenchidos com os adesivos da campanha de Déda, era o famigerado “A” em formato de caju. Eu não sabia, mas confiava em mainha e sabia que se ela acreditava que tudo ia mudar, eu acreditava também. Ter apertado aquelas teclas encheu de esperanças o coração do victor de dez anos e colocou um sorriso no rosto de mainha.
Naquela época ainda nos reuníamos na sala de casa, a TV sempre ocupando o centro de tudo. Entre um comentário e outro sobre a vida cotidiana, ela nos alertava sobre os anos de chumbo, sobre a década apagada, ela ilustrava a esperança por um Brasil melhor. Ela dizia que só Lula poderia realizar isso. Pra aquela família, naquele tempo até o horário político era um momento de conforto, mesmo atrapalhando o horário de nossa novela. Naquela sala de estar, na passagem dos dias, em situações cotidianas, entendi um pouco sobre nossa situação social e também aprendi a sonhar com um futuro melhor.
Nesse Domingo vou sozinho apertar o 13 na urna. Na hora do prilimlim , espero também recordar o sorriso de mainha, quando eu apertei o 13 por ela. E voltar para aquela sala de estar, agora completamente diferente, e vislumbrar novamente um futuro digno para todos nós.
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para além do texto
👩🏾🚀“Em “Marte Um”, sonhos nascem, morrem e se refazem, de geração em geração, apontando sempre para um futuro novo.” Artigo da Revista Gama sobre o filme Marte Um
⭐️“Acima de tudo, eu quero um presidente que me inspire esperança, em vez de repulsa a cada vez que abre a boca.” Brasil em metamorfose, da newsletter Uma Palavra de Aline Valek
📚“(…)entre páginas ensaísticas sobre literatura ou sobre identidade ou sobre o tempo, escreve outras várias em que está dando banho em seus filhos, limpando a banheira para enchê-la de água, fazendo salsichas que ficam esturricadas enquanto conversa com o amigo e as crianças assistem televisão na sala.” A morte do pai e a morte do meu pai - Natália Timerman em artigo publicado na Revista Deriva sobre a série Minha Luta