1.
Era sempre uma emoção dobrar a avenida e ir em direção a beira-mar, na minha imaginação infantil, era como cruzar um mundo diferente e o rio Sergipe, sempre disponível, estava ali para abençoar nossa passagem. No final dos 90, início dos 2000, cruzávamos o rio de balsa todos os domingos em busca da praia da Atalaia Nova. Nossa viagem começava antes, com o 001 Augusto-Franco/Bugio, eterno companheiro de muitas andanças, até o ponto do terminal hidroviário. Lá pegávamos a balsa, onde os cheiros de domingo marcavam a excitação do dia. Lembro da sensação da água batendo nos pés enquanto nos balançávamos até chegar ao outro lado. De lá, antes da areia e sol, admirávamos a paisagem de uma ponta a outra de Aracaju.
Não me incomodava o fato de não termos carro, gostava da sensação de passar por baixo da catraca do ônibus, sentar num acento duplo e ver as diferentes pessoas, imaginar suas histórias, tendo como pano de fundo a cidade que corria livremente pelas janelas. Nas viagens de ônibus me sentia plenamente integrado a cidade que me cercava, me sentia como parte viva do seu ecossistema. Nossas viagens não eram diárias, se limitavam a idas a praia no final de semana ou algum outro evento, nossa principal forma de percorrer ruas e avenidas era a pé, considerando que minha escola era no mesmo bairro que morávamos no centro a uma caminhada de distância de quase tudo que precisávamos. Uma vez ao mês íamos ao dentista para manutenção do meu aparelho, um inferno, mas o percurso até chegar a tortura valia a pena. Pegávamos o Sanatório/DIA na Simeão Sobral, descíamos na praça Tobias Barreto e caminhávamos até a rua Campos. Na volta o aperto no dente era compensado com uma revistinha da turma da Mônica, comprada na sempre presente banca de revista do ladinho do ponto de ônibus, lugar estratégico. Do primeiro aperto do braquete guardo a lembrança da dor e a memória do almanacão de férias da turminha.
Pegar o Circular Indústria e Comercio/200 era um momento de alegria dupla: a chegada ao ponto de ônibus posicionado em frente a uma banca de revista, a maior do bairro, e o percurso que tinha sempre como destino o shopping Jardins e suas infinitas possibilidades, desde uma livraria até o cinema, meus lugares favoritos para fugir do mundo em busca de muitos outros novos. Não fazíamos sempre esse caminho, por isso aproveitava bastante o momento, escolhia com muito cuidado o gibi que me acompanharia na viagem, sentado no banco balançante do ônibus não conseguia ler mais do que duas páginas, distraído com a cidade que se desenhava ao meu redor, mas gostava da sensação de poder carregar a revistinha na mão como um lembrete.
Da janela, com as mãozinhas batendo freneticamente no gibi, observava atentamente a mudança na paisagem, não sabia qual era a parada certa, via o desdobrar do tempo moldando os prédios ao redor, e de repente a chegada ao destino. Não lembro o que fazíamos exatamente lá dentro, além de implorar por uma nova revista na Escariz e comer uma caixinha do mclanche feliz. Mas, lembro da sensação, da palpitação de ansiedade ao longo do caminho vivenciando a cidade pela janela.
Num sábado qualquer, nos idos dos anos 2000 e poucos, Eunice deu a ideia, que na hora me pareceu a coisa mais legal do mundo e topamos: visitar o novo terminal recém inaugurado na atalaia, pegando um ônibus na avenida Simeão Sobral e seguindo até o terminal DIA, de lá embarcando para o terminal. Era esse o passeio, sem paradas, apenas uma viagem de ônibus num sábado a tarde, se deixando levar pela cidade que corria e mudava suas paisagens ao longo do caminho. Lembro de avistar a cidade sentado num banco sozinho, já que as duas amigas viajaram num banco duplo conversando animadas, eu sentia uma emoção inexplicável naquele momento, era como se estivesse cruzando um destino ao me aventurar pelas ruas de aju, era como se a infância rapidamente estivesse passando por entre as paisagens que corriam pelas janelas. Aquela tarde passávamos pelas ruas já bastante conhecidas, a rua da frente, o rio, a avenida Beira-mar, a Hermes fontes, chegando até o terminal, com suas barraquinhas de variedades, todas organizadas no outro lado da rua.
Descemos por um lado e embarcarmos de volta no circular cidade/500. Imagino que para elas tenha sido apenas uma tarde de sábado qualquer, cenário diferente para conversas banais. Mas, para mim, foi uma espécie de marco iniciatório. Nos anos seguintes, na mesma velocidade em que as ruas de Aracaju passavam pela janela, tudo foi se transformando.
2.
É quinta-feira, o sol forte queima minha pele, ainda é fevereiro e já penso que em breve as águas de março chegarão com sua missão de fechar o verão. Caminho em direção ao centro, é perto da minha casa, seguindo uma reta chego ao meu objetivo. No caminho passo pela praça Santa Isabel, era esse mesmo caminho que fiz por tantas quintas-feiras quando corria em busca da revista Recreio na banca vizinho a barraca de caldo de cana. O rapaz do caldo de cana com pastel continua lá como a confirmar minhas lembranças, a outra construção há muito tempo deixou de funcionar. Esse também era o caminho que fazíamos com mainha, meus irmãos e eu dias antes do encontro familiar de Natal. Comprar roupa em família era uma tradição que mantínhamos, na época eu não entendia que o passeio era proporcionado pelo décimo-terceiro e a necessidade de virar o ano vestindo algo novo. Para mim, percorrer aquele caminho, saltar de loja em loja preenchendo o gosto de todos era um passeio aguardado de dezembro.
Voltávamos para casa pelo mesmo caminho, cada um carregando suas sacolas, às vezes um ou outro saía na frente aborrecido pelas limitações de dinheiro, ou de humor. Antes de chegar em casa brindávamos a sede com um caldo de cana com bastante gelo na praça. Volto pelo mesmo caminho, tenho sede, mas não paro para beber um caldo, assim como não carrego sacolas de roupas, mas uma mochila de viagem, daquelas bem grandes com capacidade de carregar tudo, inclusive as lembranças.
*
Abro o aplicativo de ônibus, o mapa que ele revela é irreconhecível. Insiro o novo endereço que me acompanhará por alguns anos e ele diz qual ônibus devo pegar, em qual parada descer, os pontos de referências, mas nada faz sentido. Na hora indicada desço para o ponto, espero pelo 1053 ou 1035, não consigo decorar os vários nomes da linha que para mim não dizem nada, ao menos não ainda. O primeiro aponta na esquina, faço sinal e entro como se soubesse o que tô fazendo, há muito que não sei muito bem, apenas vou indo. O aplicativo indica quem em quinze paradas chegarei no meu destino, aproveito para observar a cidade pela janela, suas ruas que se perdem em ladeiras e construções que guardam histórias ainda não exploradas. O ônibus segue sua rota passando por ruas que nunca vi antes, fachadas de lojas que não dizem nada, tento ir aos poucos me segurando na paisagem visual, criando novas referências, fixando prédios e supermercados na memória, assistindo o dia-a-dia do povo na rua que se movimenta alheio a mim.
O ônibus para, pelos meus cálculos ainda estou longe do ponto de chegada, é apenas o sinal, me distraí com a vista, uma bela visão do mar, nessa cidade o mar me abraça por todos os lados, olho para outro lado e vejo uma pequena multidão parada, é um ponto de ônibus, ao seu lado uma banca de revistas, compacta com várias edições de publicações populares penduradas numa corda. Em três paradas a frente encontro mais uma banca de revista, além dos tradicionais itens, frutas e outras coisas chamam atenção dos clientes que se aglomeram a sua frente. Lembro de minha mãe e de como ela sempre repetia que nunca mais colocaria os pés nessa cidade, mas ao mesmo tempo compartilhava memórias de outros carnavais de rua numa Salvador de sua juventude. O que será que ela diria para mim agora? O ônibus segue a viagem, em poucas paradas desço no meu destino e me distraio com as novas possibilidades.
"Volto pelo mesmo caminho, tenho sede, mas não paro para beber um caldo, assim como não carrego sacolas de roupas, mas uma mochila de viagem, daquelas bem grandes com capacidade de carregar tudo, inclusive as lembranças."
Precisei parar aqui pra limpar os olhos das lágrimas. que lindeza esse texto, victor. Quantas camadas o território pode abarcar na memória?
abração procê!