memória, dispositivos e retorno.
considerações sobre o filme aftersun em meio as minhas memórias.
ainda estava abrigado na segurança infantil dos anos noventa, a virada paras os dois mil, momento de destruição de certezas e seguranças, ainda não tinha chegado. sentávamos os três numa sala gelada, cadeiras desconfortáveis, cheiro de pipoca, copão de refrigerante, com a escuridão que se alastrou de repente pela sala veio o medo, logo abrindo espaço para outros sentimentos. a minha frente imagens se projetam num telão enorme. a insatisfação daqueles que me acompanhavam era visível, mas para mim independente da história que se desenrolava ali, xuxa em uma saga em busca de vencer um concurso de dança apresentado por luciano huck e contando com a ajuda de muitos globais e celebridades da época, o que mais me encantava era a possibilidade de projetar eu mesmo sonhos e desejos naquela telona. as possibilidades infinitas que aquelas imagens projetadas traziam despertava algo inédito em minha vida.
num domingo qualquer, como todos os outros naquela imensidão de anos que era a infância, estávamos todos reunidos em frente a pequena tela do televisor na ampla sala de minha avó. a luz do fim de tarde invadia as janelas pintando a paisagem interna de um laranja vivo. o motivo da reunião em volta do objeto se revelava a medida que o videocassete rodava um filme antigo. pela telinha eu via as mesmas pessoas que estavam ao vivo ao meu redor, com roupas diferentes, com menos idade. eu não existia naquele mundo projetado, ainda. os rostos que apareciam na telinha eram levemente diferentes daqueles que eu podia ver sorrindo ao ser ver refletido pelo tempo. todos sorriam, tanto na projeção quanto ao vivo, relembravam histórias, comentavam sobre os ausentes, teciam narrativas, criavam mitos. eu do meu canto absolvia tudo e ficava encantado com a magia daquele aparelho. tentava me inserir naquela memória compartilhada, será que com um pequeno esforço da imaginação eu poderia entrar naquele estranho objeto? uma vez lá dentro figuraria nas memórias de todos os presentes?
nunca mais revi aquela fita. o videocassete tornou-se obsoleto. uma caixa retangular perdida no armário da sala, acumulando poeira. pedaços de memórias que se foram. para sempre.
o álbum de fotos da infância abarca o período de segurança, a infância nos anos noventa. são fotos de festinhas na minha casa, encontros familiares na casa da avó, festas na igreja do bairro. momentos de comemorações ou datas especiais, desfiles de sete de setembro, fantasias de carnaval, despedida das aulas na escolinha do bairro em que estudamos. em uma dessas fotos, tirada na sala de minha casa, minhas tias aparecem sentadas em cadeiras de madeira, elas olham para a câmera enquanto dois bebês passeiam aos seus pés alheios ao flash. a primeira vez que vi essa imagem reconheci aquele pedaço da nossa sala, poucos anos marcavam a distância. comentei lembrar daquele dia, relatei o que tinha acontecido, era tarde, dia de semana, recordava até do cheiro do dia. mas um detalhe me passava, a foto havia sido tirada em 1990, dois anos antes do meu nascimento.
as lembranças se confundem em minha cabeça, não sei o que de fato inventei como narrativa minha, ou o que são memórias. não sei se fui ao cinema pela primeira vez assistir xuxa requebra, ou xuxa popstar, ou simão o fantasma trapalhão1. recordo apenas da possibilidade da telona - perceba que agora mesmo intento criar o mito da paixão pelas imagens em movimento desde a infância. será? não sei se nos reunimos alguma vez na vida para assistir à filmagem do casamento dos meus tios, posso jurar de pés juntos que sim, posso até sentir a luz daquela tarde queimar minha pele, mas assim como aquela fotografia, pode ser uma memória inventada.
há algumas semanas assisti aftersun2, talvez um dos melhores filmes do ano, ao final da sessão chorei como há tempos não chorava. nas quase duas horas de projeção nada parece acontecer: pai e filha viajam de férias, anos 1990, câmera filmadora em mãos. apenas isso durante toda a projeção. antes das imagens ouvimos o familiar barulho da configuração de uma câmera analógica, a movimentação do zoom, até enfim abrir a imagem, estamos assistindo ao que o objeto captura, um pai em movimentos de dança estranhos enquanto a filha o visualiza através do objeto, a menina simula uma entrevista aproveitando o calor do momento, o cotidiano nos atinge em cheio: “bom, eu acabei de completar 11 anos e você tem 130, completando 131 em dois dias. então, quando você tinha 11 anos, o que você pensava que estaria fazendo agora?” pergunta a menina. a imagem é interrompida, zoom in, no reflexo uma mulher assiste aquelas cenas, a projeção mistura imagens que parecem atuais com aquelas do vídeo. as imagens registradas, ou seja o real possível, se mistura com a memória borrando as percepções.
o recurso acessado pela personagem funciona também como um marcador temporal, delimitando os eventos da narrativa em um período espacial específico, os anos noventa. essa localização espacial preenche a narrativa com camadas sensoriais. para mim esta década representa a segurança e a estabilidade, em um primeiro plano isso ocorre por eu ter vivido a minha infância neste período, ou os anos de inocência e aprendizado. porém essa segurança é uma sensação talvez muito particular, se pensarmos em relação à brasil e organização política, tudo estava um caos. inclusive uma lembrança muito comum desses anos em minha família eram as conversas sobre a instabilidade econômica, aprendi sobre os anos collor na sala de casa. mas, eram situações que no meu mundinho infantil não eram completamente absolvidos.
comento isso tudo para dizer que outro fator revelado por essa localização específica está diretamente relacionado a memória e sua consequente forma de acesso. esses anos representam a transição de um mundo analógico para o digital, com isso o acesso e a produção de imagens crescentes, afetando assim como lidamos com essas informações, com essas imagens, principalmente, com a memória. a fita cassete do casamento dos meus tios foi um luxo para época, mas se o mesmo evento fosse organizado hoje em dia provavelmente todos os convidados teriam em seus celulares milhares de fotos e vídeos, essa memória nunca seria perdida num canto obscuro da cômoda acumulando mofo.
quando a narrativa utiliza esse dispositivo para atrelar a relação entre pai e filha, localizando os eventos a serem rememorados pela personagem anos mais tarde, me parece que há uma intenção de brincar com os limites do que conseguimos guardar e como essas memórias irão afetar a nossa maneira de lidar com determinadas situações. a imagem final traz a personagem em frente a um televisor revendo as imagens produzidas nas férias, mas há ainda outro fluxo narrativo que conduz a história das duas personagens. a pergunta feita no início do filme nos direciona no caminho de compreensão da natureza da relação pai-filha. os possíveis erros e abstrações, revelando também o peso da idade, ou das marcas sociais que se entrelaçam nessa relação.
ao longo do filme percebemos alguns sinais de rachaduras, são cenas despretensiosas, afinal nada acontece, mas ao mesmo tempo as imagens conduzem o espectador para um sentido. a questão da memória, a possibilidade de editar o momento presente, de buscar num registro imagético as respostas, ou a possibilidade de formular novas questões, me parece ser o ponto principal dessa história. é nessa comunhão de imagens, que o sentido é produzido tanto no universo diegético, quanto no espectador.
ao final me vi chorando, daqueles choros que não cessam facilmente. não é raro me afetar por um produto audiovisual, e quando acontece dessa forma fico obcecado buscando compreender as causas. acredito que não seja necessário encontrar a fonte da emoção, talvez até seja um indicativo de perda de sentido, mas refletindo sobre o filme pensei muito nessas imagens citadas no texto, a primeira ida ao cinema com a presença marcante do meu irmão mais velho e da minha mãe. a fotografia na sala de minha casa, imagem que até hoje me provoca dúvidas, se eu não estava presente, como consigo me recordar desse dia? as imagens em vídeo do casamento dos meus tios também figura em minha mente eclipsada por dúvidas. penso na relação que temos hoje com as imagens, eu mesmo usuário do aplicativo fotos do google há anos coleciono momentos corriqueiros, sempre com o intuito de poder de alguma forma viajar no tempo, parecido com a personagem do filme. como se acessando aquela imagem borrada da turma da universidade nas primeiras semanas de aula há mais de uma década, pudesse trazer alguma resposta a realidade atual.
será?
a pergunta da filha ao pai me atingiu em cheio em outro sentido. aos 11 anos imaginamos uma realidade para nossa versão de 30 e poucos, idealizações que de alguma forma grudam no nosso subconsciente. mas dificilmente corresponderemos a imaginação de nossa versão mais jovem. esse descompasso foi o grande tema do meu 2022. demorei alguns meses para entender os percursos da vida, talvez o problema esteja nessa aceleração do tempo, ser da geração que ver o analógico morrer dando lugar a um mundo digital em que nada parece criar raízes, já que tudo se consome em três segundos. talvez sejam a enxurrada de imagens produzidas a todo instante. talvez seja a falta de acesso a memórias. não sei ao certo.
a relação da filha com seu pai em aftersun está diretamente ancorada nessas imagens das férias nos anos noventa. tudo parece partir dali. penso na minha narrativa pessoal também. busco nas caixas de fotografia respostas que talvez não estejam ali. projeto num telão da imaginação novas imagens, borrando a realidade. dessa forma tento abraçar o victor que já fui, na esperança de que ele me mostre alguma resposta. me faço a pergunta, aos 11 anos - de frente pra aquela telona de cinema- o que você imaginava estar fazendo aos 30? sobre os créditos.
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dezembro chegou e me atingiu em cheio, não consegui honrar com as edições, até tentei, confesso, mas num determinado momento apenas joguei pro alto todas as obrigações e me permiti ter pequenas férias de tudo, imagino que mais um texto com listas de melhores do ano pode passar despercebido. nesse meio tempo fui aprovado na seleção de doutorado, e vamos de mais pesquisa sobre novelas vindo aí, comecei a namorar, mostrando que uma das promessas do nosso presidente já está sendo colocada em curso, enfim, vida e suas movimentações. para 23 pretendo reogarnizar a newsletter mudando a periodicidade, aguardem. no mais desejo a todos um execelente novo ano, que seja refleto de realizações. agradeço o carinho em abrir esses e-mails e criando um canal de comunicação muito gratificante. abraços <3
com certeza, considerando a época, um dos primeiros filmes que vi no cinema foi alguma produção de xuxa ou os trapalhões, mas a certeza do marco inicial se perdeu.
aftersun, escrito e dirigido por charlotte wells, está em cartaz em alguns cinemas e a partir de hoje (06/01) em cartaz no mubi. aproveita a promoção de 3 meses por 10 reais e assista ao filme ( não é publi)
Esse filme também me atravessou de um jeito que... olha!