wibbly wobbly, timey wimey stuff
Compraram bastante cerveja, uma caixinha para cada um, só estariam os dois que bebiam na comemoração, então as 12 latinhas eram o limite individual. Esqueceram a comida, de estômago vazio não aguentaram nem 5 latinhas. Mas romperam o ano, desejaram feliz ano novo, os votos de felicidade e saúde e sorte e muito dinheiro no bolso preencheram aquela sala. Da janela ele observava a chuva cair, filmou os raios que dominavam a paisagem criando assustadores efeitos visuais. Imaginaram que aquele temporal representava o fim de uma época ruim e marcava o inicio de algo novo e muito, muito bom. A chuva ainda o fazia pensar em quando era criança e sempre se surpreendia com a virada de ano. Na televisão assistia aos estouros dos fogos em várias cidades celebrando a chegada do futuro, mas ele ainda estava sob a influência de um velho ano, preso a um passado, ao menos por mais uma hora.
Descobririam depois que apesar dos votos e dos desejos de felicidades, aquela chuva na virada do ano vinha como um sinal, "raios e trovões!" como diria o icônico personagem na hora de um ponto de virada na narrativa de cada capítulo do Castelo rá-tim-bum. Para eles o ponto de virada seria uma curva ainda mais acentuada para dentro, encarando a profundidade de si.
Nos primeiros meses do que veio a ser o "novo" ano, tentaram esconder as angústias recorrendo a uma positividade extrema, relembrando a necessidade de acreditar e seguir em frente, pensar que o pior já passou, afinal, como poderiam prever que o pior ainda estava por vir?
Na situação que se desenhou a frente deles, olhar para o futuro parecia ser uma tarefa digna de personagem mítico grego, afinal, como imaginar um futuro se a cada dia esse futuro era ceifado para milhares de pessoas? Como fabular um mundo novo em meio aos caos?
A solução que ele encontrou foi voltar para o passado, se aninhar em memórias já consolidadas e preencher o vazio dos dias com o tempo que já havia sido vivido. Ele não tinha uma máquina do tempo, óbvio, nem iria receber a visita de um/a britânico/a convidando para aventuras temporais. Por isso afundou-se sozinho em memórias revivendo cada dia naquele estranho mundo doente como se estivesse em outra realidade, afinal
o tempo não corre em linha reta.
Era Março de novo, mas dessa vez o mês vinha com um sentimento diferente, percebido apesar da estagnação e apatia, suas fiéis companheiras. As manhãs não eram mais preenchidas pela rotina já conhecida. O percurso feito nos últimos 4 anos de sua casa até a escola, voltando para casa nos mesmos horários, todos os dias, havia enfim terminado. No primeiro dia ainda não sabia qual ônibus pegar para chegar ao novo lugar que preencheria seus dias pelos próximos quatro anos, na verdade até tinha uma ideia, mas a insegurança ao enfrentar um mundo novo gritava em seus ouvidos. Colocou a mochila nas costas, atravessou a avenida movimentada, esperou estrategicamente a hora em que as duas pessoas do ponto de ônibus deram sinal e as seguiu, chegando assim a universidade. Considerou isso uma vitória, havia enfim se embrenhado por um novo caminho, aprendeu que o 310 ou 035 o conduziriam diariamente nesse novo percurso. E seguiu assim.
Num final de tarde qualquer o ônibus parou em um semáforo, aquele era um ponto em que o tempo parecia congelar por alguns minutos, gerações dançavam pelas janelas enquanto ele permanecia parado. A paisagem que circundava essa parada era a entrada de um cemitério. De sua janela conseguia ver um pouco da movimentação lá dentro, um ônibus, as vezes mais de um, estacionados a porta, muitas pessoas na entrada como que se recusando a confrontar a única certeza, muitas outras com um sorriso distante no rosto, muitas lágrimas sempre. Do seu ponto de vista a pequena capela, central na arquitetura do lugar, ganhava um destaque ainda maior, ele podia ver alguns homens e mulheres uniformizados andando para lá e para cá, ocupados em seus afazeres, alheios a tudo que ocorria ao redor. A movimentação do vermelho pro verde não abria espaço para passagem. Do 310 ele conseguia ver aquele garoto vestindo uma camisa preta que parecia encobrir todos os medos, sufocar todas as incertezas, andando distraidamente entre as lápides, acompanhava uma pequena procissão. Conseguia ler em seu rosto a dúvida, o misto de sentimentos, as incertezas. Ecoava por todo o espaço-tempo a frase "não chore" e ele não chorava. Ecoava pelo espaço-tempo um choro preso na garganta o atingindo bem no peito. Piscou por alguns segundos, o ônibus avançou deixando aquela imagem para trás, mas o garotinho seguiu percorrendo a avenida dentro do 310.
o tempo não corre em linha reta.
Naquela noite a casa estava estranhamente silenciosa. As duas crianças haviam gastado todo o estoque de energia ao longo do dia e agora descansavam inertes a movimentação das duas mulheres. Elas pareciam aliviadas, a mais velha aparentando um cansaço de eras, sentava no sofá, meio cochilando meio conferindo as notícias do jornal. A outra, mais jovem, mas já marcada pelo cansaço da lida diária entre casa e trabalho, aproveitava para continuar com os afazeres domésticos acumulados do dia.
A sala da casa sem a interação das crianças parecia um outro cômodo, onde a pequena televisão de madeira com seu sinal flutuante, apesar da antena estrategicamente posicionada um pouquinho para a direita e outro pouquinho para esquerda, era a centralidade. O sofá preto e pouco confortável de três lugares que ficava em frente a tela, ocupado agora pela mulher mais velha que parecia emergir do sono profundo ao escutar as noticias sobre a alta dos preços no supermercado. O som que saia daquela caixinha inundava a casa inteira e fazia com que a mais nova, enquanto limpava a cozinha, pensasse na ida ao supermercado na manhã seguinte.
Era Novembro, final da década de 1980, tudo estava instável, não apenas dentro daquela casa. A situação econômica, política, afetiva, enfim, tudo parecia um caos. Ela continuava com os seus afazeres, sentia a água correr livremente pela torneira enquanto deixava o pensamento livre, eram raros aqueles momentos. Ao fundo ouvia a voz de Gal Costa clamar "Brasil! mostra a tua cara", enxugou as mãos no pano de prato e sentou em frente a televisão. A mais velha já havia desistindo da luta contra o sono e roncava ali mesmo. Alheia a tudo ela apenas absorvia o frenesi de imagens que passavam por sua tela sem se apegar de fato ao que estava assistindo. Era a primeira vez que relaxava no dia, começava a sentir agora todos os músculos reclamando.
Ela não sabia, mas naquele momento estava sendo observada por alguém sentado naquela mesma sala, mas não mais naquele sofá, que assistia a exata mesma cena numa tela não mais tão ruidosa. Ela não tinha como saber que daquele mesmo cômodo sem os barulhos da vida que o preenchiam o dia inteiro, ela era vista.
Ele ocupava o espaço, tudo era igual, mas diferente. Mais de 30 anos os separavam, os limites da vida e da morte os separavam, mas o tempo era o mesmo. O mesmo dia no final de Novembro, naquela mesma sala, a mesma Gal Costa a cantar a decadência de um país representado por Raquels e Marias de Fátimas. Sentia o cheiro de outro tempo, fechou os olhos e lançou um beijo no ar.
Ela não tinha como saber, mas sentiu, no silêncio incomum dos dias de luta, sentiu o abraço que vinha no ar com cheiro do por vir.
REFS ALÉM DO TEMPO
People assume that time is a strict progression of cause to effect, but actually, from a nonlinear, non-subjective viewpoint, it's more like a big ball of wibbly-wobbly, timey-wimey... stuff. (as pessoas pensam que o tempo é uma progressão de causa e efeito, mas realmente, de uma visão não linear e subjetiva, é mais como uma grande bola de wibbly-wobbly, timey-winey...algo do tipo).
Tem um ditado atribuído a algumas nações africanas que diz mais ou menos o seguinte "Para construir um futuro é preciso olhar para o passado", isso sempre me faz pensar que o tempo não corre em linha reta, como fomos levados a pensar dentro da sociedade capitalista em que vivemos. Quando estou num xirê no candomblé sinto o tempo parar, entro em um outro modo de percepção da passagem das horas, as vezes elas vão pra frente, mas essa não é a regra. Tenho refletido bastante sobre isso e os textos sobre o tempo do Nathan Fernandes foram fundamentais para pensar melhor sobre tudo o assunto. "Dia fora do tempo" é a edição 42 da newsletter PunkYoga onde ele reflete sobre essas questões, desdobrando-se também nos textos sobre a relação com o calendário e nesse outro onde ele fala sobre a estranha sensação que acometeu a muitos de nós na pandemia, a estranha sensação da passagem de tempo no nosso dia-a-dia.
Esse episódio (Blink) de Doctor Who - O gif acima é um quote do momento em que o doutor tenta explicar como o fluxo temporal funciona de verdade.
Esse texto(em inglês) sobre construção de memórias a partir das relações que estabelecemos com o google maps, verdadeiras viagens temporais. O que me lembra a minha relação com os intervalos comerciais antigos nos canais do youtube, já falei um pouco sobre esse estranho conforto nessa edição. É como se ao assistir aos mesmos intervalos comerciais - que não são exatamente uma narrativa delineada como um filme ou novela, mas fragmentos do dia-a-dia- eu pudesse viajar no tempo e reencontrar o mesmo Victor que assistia a isso naquele ano especifico.
"Carta de uma criança queer para outra criança queer: percursos espectatoriais desviantes na infância" - Voltar a episódios da infância e tentar remover a camada traumatizante, fabular novos futuros acolhendo o passado, é o que vislumbra essa troca entre os autores Dieison Marconi e Fábio Ramalho. Esse artigo foi o pontapé inicial para pensar no texto de hoje.
Quando a perda se encontra com a materialidade de uma casa que se transforma deixando apenas um elemento dentro, a memória. A ghost Story é um filme sobre a colisão entre passado e futuro e seus limites, um lindo poema visual.
Uma linguista é chamada para decifrar a estranha língua dos alienigenas recém chegados a terra, nessa troca ela entende um pouco sobre a forma como eles percebem a passagem do tempo e como isso altera a forma de comunicação. Passado e futuro se concentram em uma única linha, borrando limites. Esse é o enredo do conto História de sua vida do escritor Ted Chiang que inspirou o filme A chegada.
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Sobre tudo, sobre nada é uma newsletter enviada quinzenalmente por Victor Ramos.
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