quinze anos no dia quinze
Na infância chorava para dormir agarrado com mainha, era medo de sonhar.
1.
Até hoje algumas pessoas se surpreendem quando digo que nunca lembro dos meus sonhos. Sei que toda noite ao fechar os olhos minha mente vagueia livremente por campos e mundos do qual não tenho mais acesso ao abri-los pela manhã. Diana Wynne Jones em seus mundos de Crestomanci faz do sonho o portal para outros mundos, é bonito imaginar-se nesse lugar fronteiriço, onde um passo a mais nos leva ao limite do absurdo, ou, se tivermos sorte, ao limite do encantamento. Minha analista perguntava ansiosa em todas as sessões o que eu tinha sonhado ultimamente, a resposta era sempre a mesma. Nada.
Um dia acordei com uma imagem forte na cabeça. Da varanda do sétimo andar do meu prédio conseguia ver e sentir as ondas do mar, ali pertinho de mim. Não sei se as águas subiam ao meu encontro ou se ao cruzar um esquina do vale dos sonhos cheguei numa realidade em que aquele condomínio possuía esse diferencial. Lembro de me espreguiçar na varanda e achar completamente normal aquela imagem. Era bonita até.
Parecia que eu tinha pegado o gosto pela coisa, na semana seguinte dobrei outro beco do vale dos sonhos e cheguei na mesma varanda, mas dessa vez não era o mar que me aguardava. A paisagem era a mesma do mundo real, mas tudo estava vazio. Aos poucos uma pequena multidão se formava. E eu ali do alto do sétimo andar olhava aquelas pessoas, um mar de gente que se formava. Não lembro o que a analista falou, mas depois disso nunca mais cruzei os limites do vale dos sonhos e trouxe algo comigo.
Que estranho ser sempre o mar?
Na infância chorava para dormir agarrado com mainha, era medo de sonhar. Pegava no sono chorando tentando convencê-la de que a melhor solução era me aconchegar em seu abraço protetor. Os amigos do meu irmão me conheciam como “cobira” porque era assim que eu pronunciava o elemento que me acompanhava do vale dos sonhos até aqui. Nessa época tinha uma relação com deus e pedia sempre antes de embarcar no desconhecido que antes de acordar ele não deixasse ninguém vim comigo.
Funcionou. Nunca mais lembrei dos meus sonhos. Não sei se fui atendido por ele, ou se finalmente mainha ter cedido aos meus pedidos realmente era a solução ideal.
2.
Nutria desde a infância um receio estranho do décimo quinto aniversário. Achava que algo muito chocante iria acontecer, que o pior pesadelo se realizaria. Tentando jogar luz nos medos do passado, imagino que fosse alguma reação adversa ao baile de debutante, tradição reservada ao feminino apenas. Não sei como as engrenagens do meu cérebro se contornaram me deixando esse pavor estranho. Quinze anos no dia quinze, um portal se abriria e arrancaria tudo ao meu redor, imaginava aflito. Acordei naquele dia e me deparei com a estranha tranquilidade.
O mundo já havia desabado antes.
3.
Não sei quando comecei a sonhar acordado. Atravessar o vale dos sonhos de olhos abertos parecia mais fácil. No início tive dificuldade em distinguir o que era real, tudo pareceria fora de lugar. Deixei o sonho escapar por entre os dedos, como se mexesse na areia de Sandman, firmando os limites dos mundos em folhas de papel que vagavam na ventania da realidade.
Acordo de um sonho, rostos familiares ao meu redor, uma sensação forte e estranha toma conta do meu corpo. Penso em anotar, mas não tenho caderno e caneta a disposição. A claridade do celular machuca meus olhos. Desisto. Vai ver é melhor deixar passar mesmo, aproveitar a brisa que joga um pouco da areia das ruas do vale dos sonhos. Que ruas percorri essa noite? Não lembro mais.
Acordo e já não tenho mais quinze anos, mas, ainda é dia quinze. Trinta e um em um dia quinze, o medo já não faz mais sentido agora. Não lembro o que sonhei essa noite, assim como ontem e provavelmente amanhã também não lembrarei. A realidade se desenha ao me redor, percorro o vale dos sonhos com um mapa, sabendo onde gostaria de chegar e ainda assim me surpreendo com o caminho.
gostei