1.
Enquanto esperava o avião que me levaria para terras ao sul do país, observava de longe a movimentação intensa de jovens mais ou menos da minha idade. Homens e mulheres que estampavam no pescoço um símbolo: uma gravata vermelha. Na mala eles levavam os sonhos de juventude, como diz a canção que abriria o show a qual todos aqueles jovens com mais ou menos a minha idade, assistiriam nos próximos dias.
Enquanto esperava meu avião, que me levaria para as terras ao sul do país, carregando nas costas minha mochila, também cheia de sonhos e desejos, alguns juvenis, como dizia a canção que abria aquele show que eu não assistiria nos próximos dias, observava a movimentação dos meus colegas. As estrelinhas na testa e as gravatas vermelhas também refletiam sonhos meus, de alguma forma também me via refletido nessas pessoas.
Ouço a chamada do meu vôo, contrariando a lógica vou logo para perto da fila, mesmo sendo dos últimos grupos a embarcar. Me distraio.
2.
Na tetralogia napolitana, o retorno de Lenu e Lila ao bairro em que viveram na infância é marcado por diversos sentimentos conflitantes. Inicialmente Lila em seu retorno é rechaçada, aos poucos ela reconquista o bairro, praticamente se fundindo aos seus muros, uma prisão confortável. Já Lenu retorna ao bairro com um misto de reparação e busca do conforto ameaçador do bairro, mas ela sabia que não existiam muros para seus desejos, diferente de sua amiga.
Há mais ou menos sete anos, enquanto lia as aventuras das amigas geniais, surgiu a oportunidade de retornar a casa onde vivi na infância, o retorno ao bairro que de certa forma me moldou. Vi na decisão das personagens um sinal positivo e um alerta, peguei minhas malas e voltei para casa. Inicialmente foi um choque, existia uma casa na minha cabeça, nas minhas memórias, onde os fantasmas conviviam em paz. E existia outra, diferente, mudada, onde eu estava, mas ainda não a reconhecia como minha.
Estranhei a primeira vez que pisei naquele quarto ali em 2017. As paredes brancas recém-pintadas não eram as mesmas de 2003, quando Thiago e um amigo pintaram personagens de Mortal Kombat e Dragon Ball com a cara do meu irmão. A parede do meu quarto era a única do mundo que tinha um super saiyajin negro, e ele era meu irmão. Nem eram as mesmas paredes de 2005, abarrotadas de pôsteres de Avril Lavigne, Evanescence e principalmente RBD cobrindo os desenhos. No canto esquerdo, em baixo da janela, era para ter um computador amarelado pelo tempo, com a tela grandona e super desconfortável, sentado em frente a ele era para ter um menino cheio de sonhos que passava horas em frente aquela tela, projetando um futuro brilhante.
Sentei na cama por alguns minutos, tonto, a agitação dos fantasmas, o choque das realidades. Respirei fundo e assim como as amigas Lila e Lenu toquei pra frente minha vida no bairro mirando no futuro.
Até que veio aquele horror em março de 2020.
3.
Saímos do aeroporto, pegamos um táxi, apesar de não se necessário fizemos o trajeto pela orla. Eu estava maravilhado, nunca vi nada tão lindo quanto, quer dizer, já tinha visto a vida inteira, mas estar ali presencialmente era uma realização. Rio de Janeiro. Julho. 2011. Até hoje, se fechar os olhos, consigo sentir aquela emoção de pisar pela primeira vez naquela cidade, mas acima de tudo a sensação de estar prestes a realizar um sonho.
No dia seguinte pegamos um metro e um ônibus, eu e minha amiga, a primeira pessoa que se materializava daquela telinha desconfortável e ganhava dimensões reais. Chegamos na fila às 9h da manhã. Os portões foram abertos as 20:30h. As 21h estávamos em frente ao palco, tenho certeza que gastamos ali nossos últimos resquícios de juventude, mas valeu a pena quando os primeiros acordes de Black Star inundaram o palco. Baixinha, meio tímida, meio sem ação diante do público frenético, ela chegou. Avril Lavigne em minha frente. O Victor de 10 anos vibrava dentro de mim. O Victor de 20 sentia as dores e o cansaço, mas estava recompensado.
Lembro do momento em que ela cantou Don’t tell me, uma das minhas músicas preferidas, imediatamente voltei para aquele quarto, de frente aquela telinha amarelada, junto aos meus pôsteres, parecia que ela estava cantado só para mim, que o som saia daquelas caixinhas de som horríveis. Foi a primeira vez que senti o gosto de realizar um sonho nutrido por uma criança que vivia a vida dentro daquelas paredes coloridas e de frente para aquela telinha amarelada.
4.
E eu mirei no futuro. Naqueles tempos mais sombrios me revesti de esperança, passando a maior parte do tempo apenas eu, meu notebook, os milhões de textos para ler e as quatro paredes brancas preenchidas de Post-its e anotações da dissertação em ebulição. Foram meses desviando do que estava acontecendo e mirando no que viria. Dia após dia. Mas, às vezes eu sentava na cama e olhava aquelas paredes, não sei se era um efeito do cansaço, da confusão mental, do medo, de tudo misturado, mas naqueles momentos os fantasmas sopravam no meu ouvido e eu via aquele Victor em frente a uma telinha amarelada.
Em um desses devaneios, assistindo uma live de RBD com o notebook na cama, o mundo pareceu explodir ali naquele quarto-prisãopandêmica. As paredes brancas voltaram a ter os pôsteres, as pinturas, os super saiyajins, as bandas, tudo voltava para seu lugar. Eu me via em vários tempos ao mesmo tempo, enquanto todos cantavam aquelas canções que nunca saíram da minha memória. Tentei abraçar aquele Victor, falar com os fantasmas, dedicar aquela explosão do tempo para eles. Tentei cantar salvame a plenos pulmões, tentei deixar o medo da morte para fora. Mas me vi apenas paralisado em frente a telinha, os efeitos especiais passavam por mim, igual ao Victor lá de 2005 assistindo ao generacion tour com uma qualidade baixíssima e pensando “será que um dia eu vou sair daqui?”.
5.
Na tetralogia napolitana, Lila tenta sair do bairro uma vez pelo túnel, Lenu a acompanha morrendo de medo, mas se inspira na coragem da amiga. De repente, Lila para no meio do caminho e volta atrás. Lenu fica confusa, desejava e sabia que apenas atravessando o túnel, saindo do bairro, conseguiria ser plena. Lila tinha medo e viveu a vida inteira no bairro. Lenu, por outro lado, conseguiu explorar o mundo, ainda que mantendo o bairro e Lila como sua centralidade, encarou sem medo tudo o que precisava para ser plena.
Encaro o avião que irá me levar para as terras ao sul do país. Sorrio ao esbarrar com jovens de mais ou menos minha idade com gravatas vermelhas. Nos próximos dias eles realizarão um sonho. Eu ainda acompanharei pela telinha, agora do celular, chorando em todos os vídeos, cantando com o coro todas as canções. Nos próximos dias, nas terras ao sul, eu não estarei realizando esse sonho daquele Victor de 2005 que cantava todas as canções em frente a uma telinha amarelada, mas acho que ele está orgulhoso de ver que sim, a gente conseguiu sair dali, o Victor de 2020 também. Não estamos mais presos nessas quatro paredes brancas em frente a uma tela projetando futuro, estamos dando pequenos passos em direção ao outro lado do túnel.
Que lindo isso 🥹🥹🥹
Que feliz te ler de novo!! Seus textos sempre me impactam e sensibilizam. Agradeço por continuar <3 Abraço, lindeza!