ouvir as vozes da memória
Gosto de ver fotos antigas, sejam as analógicas que parecem guardar a história de uma vida que não existe mais, sejam as bem guardadas em pastas na nuvem de uma mega corporação. Sou apegado demais às memórias. Pitty diz que memórias não são só memórias, são fantasmas que nos sopram aos ouvidos coisas que eu nem quero saber. Mas tá aí, gostaria muito de ouvir o que esses fantasmas têm a dizer. Nos últimos tempos marcados pelo isolamento social tenho encontrado conforto nessas pequenas viagens ao passado, descubro até respostas as quais nem havia sequer formulado perguntas.
Tenho o hábito de guardar pedaços de memórias em formato de cartas, cartões, ingressos que se apagaram, chaveiros de lugares distantes, folhas de papel com conversas antigas, cartão de metrô de cidades que viajei. Já fui muito mais acumulador, com o tempo fui deixando a coleção de ingressos do cinemark com todos os filmes que assisti ao longo dos anos do ensino médio irem embora junto com as apostilas e livros do período. Precisava abrir espaços para novas memórias.
Quando deixei a casa de minha infância para passar um mês fora e que sem eu me dar conta se transformou em quase uma década, deixei lá objetos de uma vida inteira até aquele momento. Havia a esperança de sempre retornar, até que um dia não havia mais nada. Minha coleção de revistas recreio, as revistas com posts das bandas que gostava - um grande tesouro da perspectiva de um victor 15 anos mais moço que este que vos escreve. Tudo sumiu - perceba que minha memória não consegue nomear mais do que dois itens- , restando apenas uma caixinha com algumas fotos.
Observando essas fotografias percebo alguns elementos que pela distância do tempo haviam há muito fugido da minha mente. O imenso porta-retrato que ocupava a parede da sala com a foto dos meus irmãos crianças habitando um mundo onde eu ainda não existia. Ao lado, talvez colocado por meu irmão mais velho e nunca removido por minha mãe, uma pequena moldura com uma fotografia dele num desfile de escola vestido de soldado. Eu adorava me sentar no sofá ou em minha barraca feita de lençóis e cadeiras, e admirar aquelas fotos, elas estiveram presentes preenchendo os meus dias com uma certeza tangível. Sempre quando chegava em casa poderia olhar para aqueles rostos congelados e ter algum tipo de conforto, uma segurança.
Em outra foto estou na frente de minha casa, os blocos de pedra e a calçada com seu piso de quadradinhos me faziam ter a sensação de estar entrando numa espécie de caverna, eram outros símbolos de conforto, achava que as elaboradas pedras que compunham o mural da frente de casa nunca sairiam do lugar.
Olhando para a foto estática me peguei com uma dúvida: a casa ainda se mantinha com essa mesma fachada? Demorei um pouco para lembrar. Não, nenhuma pedra se manteve no lugar.
Numa outra fotografia estou posando ao lado do meu irmão, ele segura nossa cachorra, Natasha. Estou reproduzindo uma pose de braços cruzados prestes a dar um sorriso sem abrir os lábios. Na época (dezembro de 2001) fazia apenas algumas semanas que estava usando aparelho dental. Não lembro de ter vergonha dos meus dentes tortos, acho que eles não eram uma questão pessoal até alguém dizer que eram um problema e as idas mensais ao dentista para manutenção e novos tratamentos se estenderem até 2009, quando eu já estava em outra vida. Mainha, você nunca me viu sorrir com esses dentes novos.
Thiago sorri, um sorriso jovem. Ele iria embora dali há poucos anos, essa é uma de nossas únicas fotos juntos nessa outra vida. Natasha está assustada em seu colo, ela já era enorme ainda que fosse filhote. Ela foi o terceiro e último cachorro que tivemos, sempre por intermédio de Thiago, que queria ser veterinário, mas que deixava mainha cuidando dos animais. O primeiro tinha sido um cachorro de porte grande, vira-lata doente, encontrado na rua depois de uma briga. Passou pouco tempo conosco, precisou de um tratamento sério e acabou morrendo. Ainda lembro das idas ao veterinário e do choro de mainha. Depois veio Said, que ganhou esse nome graças a novela O clone, um filhote de poodle preto, também passou poucas semanas, um acidente o levou ainda filhote. Mais uma vez lembro do choro de mainha. Até que Natasha chegou atravessando diferentes vidas, dessa vez sendo ela a assistir a morte de suas donas.
A cachorra acabou sendo uma estranha herança que caiu no colo de minha avó. Ela foi a ligação entre minhas duas vidas, a primeira nessa casa com a fachada de pedras e com o quadro na parede da sala, com as tardes regadas a vale a pena ver de novo e diálogos entre mãe e filhos. A segunda onde tudo assume um tom de realidade, onde as primeiras memórias vão se desfazendo aos poucos enquanto, apesar de tudo, a vida continuava acontecendo.
Mesmo não estando mais na rua onde nasci, voltava todas as semanas e Natasha era a primeira a me receber com seu rabinho balançando e seu sorriso de cachorro estampado na cara. Me pergunto quem será que ela via ao me ver. Será que as linhas do tempo também ficavam bifurcadas para ela?
Voltando ainda mais longe nos retratos, chego na minha primeira festa de aniversário, neste mesmo dia há vidas atrás. Um bebê com chapeuzinho amarelo pontudo figura nos braços dos convidados. Quando acomodado nos braços de uma jovem ele chora, procuro minha mãe na foto, ela parece estar distante, penso ser esse o motivo do choro do bebê, ainda é hoje em dia.
A sala de casa é quase a mesma, o quadro dos meus irmãos ainda não está pregado na parede, a julgar pelo tamanho de Thiago que posa animado entre os convidados, imagino que iria ainda ser tirada alguns anos à frente. Em uma outra foto estou soprando as velinhas, quase caindo de cara no bolo. Os convidados, em sua maioria vizinhos, alguns que já se foram outros que ainda converso diariamente, também se vestem com o chapeuzinho pontudo amarelo. Espalhadas pela casa estão a confirmação de que aquele espaço estava em festa, a celebração de uma nova vida. Exatamente como hoje.
Passo adiante as páginas e o calendário me diz ser 1996, o mesmo dia de hoje, eu agora com 4 anos, a mesma sala, os mesmo vizinhos, eu olho para mainha ela olha para Thiago, um cruzamento de perdas e memórias. Na mesa mais um bolo, agora com duas velas, uma para mim outra para Thiago com quem divido o mês e as saudades. As fotos se misturam assim como minhas lembranças, numa página a sala de casa exatamente como me lembro da infância, na outra a mesma sala, outros móveis, um bebê, em outra chega a cachorra e o fim.
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