O passado visto através das lentes de ontem e hoje.
Telenovelas, personagens negras e representação do passado na televisão brasileira.
Lá no final da década de 1990, Joel Zito Araújo em seu seminal A negação do Brasil (documentário e livro) constatava que o horário das 18h da Rede Globo era o momento onde mais se via atores e atrizes negros dentre toda produção de telenovelas da emissora. O motivo pode ser um pouco chocante, afinal esta faixa horária é conhecida justamente por suas produções históricas, as famosas novelas de época, aonde grande parte se passa no período escravocrata. De A escrava Isaura a Força de um desejo passando por Sinhá moça, o horário se consagrou como o espaço de representação do passado de uma realidade brasileira vista através do olhar do homem branco.
Corta para os anos 2020, momento em que as telenovelas buscam renovação, seja nos temas abordados ou no modo estilístico. O horário das 18h continua com uma abordagem similar, marcado por obras que retratam décadas passadas, heroínas românticas e fortes, típico do gênero melodramático em sua essência. Mas, uma diferença em relação às conclusões de Joel Zito Araújo chamam atenção e estabelece um convite para reflexão. A forma como as personagens negras estão sendo retratadas, não mais apenas como escravizados dependente do senhor branco.
A aproximação do grupo Globo com pautas raciais tem gerado produções onde personagens negras não são apenas estereótipos de inferioridade em favor da narrativa dos mocinhos brancos protagonistas. Agora contamos com uma variedade de protagonistas e personagens auxiliares com tramas bem desenvolvidas. Grande parte dessa mudança se deve a implementação do departamento de inovação e diversidade, estabelecido pela empresa em 2021, momento onde várias empresas de comunicação tomavam atitudes similares para abarcar a necessidade de representação — seja por motivos financeiros, ou por necessidade de se estabelecer na indústria.
Isso nos leva a atual trama das 18h Garota do momento, novela ambientada numa Rio de Janeiro da década de 1950, protagonizada por uma mulher negra, Beatriz (Duda Santos). Essa não é uma novela com temática escravocrata, mas, traz uma nova visão sobre o papel dos negros na construção da sociedade brasileira. Semelhante a trama da vencedora do EMMY Internacional de 2013 Lado a lado, exibida em 2012, que retratava o Rio de Janeiro no início do século XX, com a recente pós-escravidão e a necessidade de limpar a cidade a fim de uma aproximação com as capitais europeias. Nesse contexto nos eram apresentados a protagonista Isabel (Camila Pitanga), uma mulher negra, forte e independente que enfrenta a sociedade de cabeça erguida. Separadas por algumas décadas, Beatriz e Isabel representam essa renovação da construção de personagens negras femininas nas telenovelas das 18h.
Para tensionamento gostaria de invocar outra trama, Força de um desejo, novela de 1998 escrita por Gilberto Braga e Alcides Nogueira, ambienta numa Rio de Janeiro colonial em meio aos barões do café e pessoas escravizadas. A novela, protagonizada por Malu Mader e Fábio Assunção, conta a história do casal Ester e Inácio, que apesar de se amarem bastante enfrentam as armadilhas do destino. O grande obstáculo do casal é representado pela vilã Idalina (Nathalia Timberg), avó de Inácio, uma mulher amarga, que presa apenas pelo seu bem-estar e a moral e bons costumes de sua família.
Mas aí você pode estar se perguntando o que uma história de amor entre os herdeiros do café tem a ver com personagens negras? Bom, acontece que essa é uma daquelas obras que usam como pano de fundo a questão da escravidão, afinal a novela tem como um dos principais cenários fazendas de produção de café. Em uma delas, a do Barão de Boa Ventura, vivem os escravizados que são “bem tratados”, se é que podemos chamar assim, onde todos na casa grande são progressistas e sabem que em breve a escravidão terá fim. Enquanto disfarçam suas lamúrias com palavras de incentivos, os negros trabalham e buscam uma forma de independência, é nesse contexto que Luzia (Isabel Villardis) se aproxima das duas personagens que citei acima.
O que Beatriz (Garota do momento), Isabel (Lado a lado) e Luzia (Força de um desejo) tem em comum? Todas são mulheres negras, vivendo em diferentes contextos de opressão, mas que sabem agir em prol de traçar seu próprio destino. Todas são personagens em obras de representação histórica escrita como um contraponto ao que no imaginário popular entendemos como o comportamento ideal para aquela época. Elas são personagens que vão contra o sistema, baseadas em mulheres reais que viveram naqueles contextos e lutaram com as armas que tinham disponíveis naquelas épocas, que foram apagadas pela história “oficial”.
No início de exibição de Garota do momento vi alguns comentários sobre como a protagonista se comportava não condizia com a sociedade daquela época, pois, segundo o imaginário do público, uma mulher negra não poderia ser representada daquela forma. Um contexto sobre a trama: Beatriz é eleita garota propaganda da marca de sabonetes da Perfumaria Carioca, a empresa dos grandes vilões da novela. Isso acontece depois dela denunciar um episódio racista ocorrido em uma das lojas, além disso, os donos da empresa roubaram a identidade de sua mãe, que sem memória não reconhece a filha. Agora como modelo da marca o plano de Beatriz é se aproximar da mãe e revelar a farsa.
O que algumas pessoas estranharam foi justamente o fato de Beatriz conseguir a vaga como garota propaganda e a discussão sobre racismo não ter sido o principal ponto de desenvolvimento da personagem. Ignorando completamente a possibilidade de fabulação que obras que revisitam o passado possuem, o poder de criar e cristalizar no imaginário social outras possibilidades de vida para pessoas negras. É impossível negar o papel que as telenovelas tem na sociedade brasileira, mesmo na atual era dos streamings em meio a cultura das séries, o público massivo brasileiro se educa através dessas produções. Nada mais justo do que oferecer a possibilidade de conhecer através dessas histórias outra forma de construção desse imaginário.
Em 2012 Lado a lado apresentava em suas duas protagonistas o papel da mulher no desenvolvimento da sociedade brasileira, uma mulher branca e uma mulher negra unidas enfrentavam os obstáculos para se manter firmes em suas crenças. Porém, os problemas enfrentados por Isabel eram diferentes dos enfrentados por Laura (Marjorie Estiano). Na metade da trama, típico de uma reviravolta melodramática, Isabel volta ao Rio de Janeiro, de onde precisou fugir após a falsa perda de um filho, provocado por vários golpes dos vilões. Em seu retorno, agora rica e conhecida como uma importante dançarina, ela compra uma mansão elegante, usa roupas bonitas, funda uma escola no morro da Providência e ajuda outras pessoas negras a conquistar um espaço na sociedade.
Pelos padrões observados por Araújo em suas pesquisas, o comum para essas personagens era o papel de submissa sem ação, fator comum dos primórdios das telenovelas até o início dos anos 2000. O que me lembra o desenvolvimento de Luzia, que começa a trama como uma escravizada vista pelos seus colegas conformista como uma mulher falsa e traiçoeira, que usa sua sexualidade para causar confusão. Porém, Luzia não quer ser escravizada pelo resto da vida, elaborando planos com base em seus conhecimentos ela conquista a alforria e vai trabalhar na estalagem da vila. Luzia continua sendo vista como traiçoeira pelos seus colegas, o fato dela ser uma mulher independente naquele contexto a coloca quase como uma traidora, afinal ela saiu da fazenda que tratava sua “peças” quase como humanos.
Diferente das outras duas telenovelas, Força de um desejo não tem o interesse em desenvolver a complexidade de suas personagens negras, o que era compreensível para o período de exibição (1998), antes mesmo da Rede Globo destacar a sua primeira protagonista negra em 2004. Mas Gilberto Braga já acumulava bastante experiência com esse tipo de narrativa, em Corpo a corpo, por exemplo, ele apresentou a personagem Sônia (Zezé Motta) mulher negra com uma profissão, algo incomum na televisão dos anos 1980, que se envolve com um homem branco (despertando o ódio do público). Além de Rosa (Lea Garcia) a grande vilã de A escrava Isaura, que de certo modo se assemelha a Luzia. Apesar do interesse do autor, que para os padrões atuais parece muito pouco, naquele contexto a empresa ainda não tinha interesse em explorar determinadas perspectivas históricas.
O fato é que a sociedade mudou bastante nesses últimos 30 anos e as grandes empresas de comunicação e audiovisual, principalmente nos últimos cinco anos, buscaram se aproximar de algumas temáticas sociais. Em 2025 estamos vivenciando um afastamento em massa das temáticas sociais, com as grandes empresas retrocedendo nessas políticas de inclusão e aumento da diversidade, precisamos observar atentos a estas mudanças. Mas, em relação à Rede Globo o que observamos é o interesse em retratar outras formas de sociedade, é claro que esse passo é feito não por bondade, mas por necessidade. O interesse da emissora em ampliar os imaginários sociais em relação à personagens negras reflete nessas novas narrativas. Se lá em A força de um desejo, Luzia era quase uma nota de rodapé na trama principal, com suas qualidades passando desapercebido, algumas décadas depois novas novelas tem a possibilidade de trazer essas histórias para o primeiro plano.
Sabemos que mulheres como Beatriz, Isabel e Luzia, sempre existiram, são as heroínas do dia-a-dia esquecidas, ou melhor, ignoradas. Mulheres negras que seja no século XIX ou XVIII, ou na década de 1950, não aceitavam a posição que a sociedade insistia em colocá-las e eram mulheres que se moviam contra esses lugares subalternos. A oportunidade de ter essas histórias, ainda que em poucas ocasiões, é algo não apenas importante para nós, mas uma ferramenta para ampliar nosso imaginário social. E claro que essa guinada nas narrativas não é dado de bandeja pela Globo, mas uma conquista que envolve os profissionais dos Cinemas Negros e os profissionais audiovisuais que atuam nessas produções, principalmente nas funções criativas como roteiristas e diretores.
Garota do momento, atual novela das 18h carrega esse legado de apresentar um novo imaginário para as personagens negras. O diferencial em relação as outras tramas que citei no texto é a presença de profissionais negros no roteiro e na direção, mesmo que a obra seja assinada por uma autora branca, Alessanda Poggi. Na equipe de roteiro composta por Adriana Chevalier, Aline Garbati, Mariani Ferreira, Pedro Alvarenga e Rita Lemgruber, há roteiristas negros que contribuem não apenas com questões relacionadas a temáticas raciais e na direção encabeçada por Jeferson De e composta por Matheus Malafaia, Mayara Aguiar e Tande Bressane. Há o interesse em expandir as narrativas através do trabalho desses profissionais e da necessidade contar uma nova perspectiva para a história do Brasil.
Se lá na década de 1990 Joel Zito Araújo apontou o principal problema nas telenovelas brasileiras em relação a presença negra, atualmente o cenário ganhou novas camadas, ainda que exista situações que podem ser melhor elaboradas, é preciso reconhecer os avanços. Garota do momento é uma obra que avança mais alguns pontos nesse tabuleiro que é a representação de personagens negras em telenovelas brasileiras e apresenta novas possibilidades, avançando em pontos já vistos em outras produções. Que possamos cada vez mais testemunhar novos avanços.
Excelente análise. E o doc do Joel Zito é uma aula, né?