O astronauta da saudade.
Hoje chorei na esteira da academia. Enquanto corria os fones de ouvido tocavam uma música da banda Fresno, uma das minhas bandas emo favoritas e que dominavam minha vida ali em 2006. Quando os acordes iniciais de “Uma lágrima” surgiram, me vi voltando no tempo para uma noite de lua cheia.
Uma lágrima rolou do meu rosto ao perceber que era última vez em que eu ia ver você.
Era a primeira vez que você voltava para Aracaju depois da morte de mainha. A primeira vez que eu te via pessoalmente em mais de um ano. A primeira vez que eu te encontrava sabendo com certeza sua sexualidade, no momento em que eu mesmo começava a questionar a minha. Era a primeira vez que eu podia chorar no seu ombro, mas agora você já era quase um desconhecido. Lembro quando você chegou em casa, trazia uma câmera filmadora e calçava uma Dr Martens que virou instantaneamente meu desejo de consumo — você sempre foi a minha maior referência. Através das lentes de sua filmadora você olhava a casa, nossa casa, que há poucos meses havia sido reformada. Você apontava as mudanças, destacava os avanços e eu olhava você com a câmera na mão e sua Dr Martens e sentia pela primeira vez o estranho sentimento de que tudo havia realmente terminado.
O mundo desabava ali.
Outra lágrima rolou dentro do meu coração ao ver a velocidade com que as vidas vão em vão.
Um ano já era tempo suficiente para esquecer. Esqueci o quão parecido com mainha você é, de nós você é o que mais carrega ela nos trejeitos. O choque de ter você em casa depois de dois anos desde sua primeira ida, depois de seis meses da morte dela, me causou uma angústia absurda, acho que eu nunca me recuperei disso. Sabe por quê? Porque só naquele momento eu me dei conta de que os contornos da minha existência estavam borrados.
Quando eu menos esperei, nada mais encontrei, havia desaparecido a lágrima que eu chorei.
Eu era uma criança de 14 anos. Cursava a 7ª série e naquele dezembro de 2006 estava pela primeira vez de recuperação em matemática, tragédia que me acompanharia até o fim da vida escolar. Você me dava conselhos do seu jeito. Mas eu sentia no seu olhar que faltava alguma coisa. Naquele ano outra das minhas bandas favoritas lançaram um álbum, The Open Door de Evanescence e você trouxe para mim de presente. Um dia eu estava escutando Good Enough no quarto que um dia foi nosso, mas que eu não conseguia mais te ver nele. Enquanto a voz de Amy Lee alcançava as notas mais agudas, eu chorava sozinho pela primeira vez em meses. Eu não sabia naquele momento, mas começava a me dá conta de que havia perdido tudo que mais amava. Sua presença revelava a ausência que agora me compunha. Você me flagrou chorando e foi me consolar. Não lembro se você chorou. Aliás, não lembro se algum dia vi você chorar. Será que nesses últimos dez anos que a gente não se vê, você chorou de saudades de mim?
Enquanto a sua ida poder fazer alguém chorar, é sinal que sua vida ainda não deve terminar. Já que não há saída, eu posso apenas imaginar, como seria a minha vida sem a sua pra me alegrar.
No dia que você foi embora fomos te levar no aeroporto, era a primeira vez desde aquela primeira viagem. Você não demostrava efusivamente a empolgação para ir embora, pelo contrário parecia que tinha algo fora do lugar. Lembro da lua, lembro do seu amigo que veio com você, lembro que ele me viu olhando a lua e falou algo do tipo “a mesma lua que você enxerga é a mesma que ele vê lá”. Carreguei isso comigo durante muito tempo, eu até conversava com a lua esperando que ela transmitisse uma mensagem para você. Você já chorou olhando a lua? Naquela noite sei que você chorou, disfarçava enquanto era consolado por seu amigo. Eu não lembro como foi a despedida, não lembro de ter visto seu avião decolar. Lembro de ter chegado em casa, essa casa agora tão mais vazia sem você e chorar enquanto a música tocava.
E onde você estiver estarei em coração em alma e espírito através dessa canção.
A primeira vez que vi um avião decolando foi quando te levei embora. No táxi a caminho do aeroporto você gritava da janela do carro a sua despedida eufórica “Aracaju cu do mundo!” ignorando os apelos de mainha que em meio a lágrimas discretas abaixava a cabeça envergonhada. Eu me divertia, estava ansioso para ter o quarto só para mim de uma vez por todas, ansioso para ganhar presentes quando você retornasse, ansioso para conhecer pelo seu olhar outro mundo, ansioso para ver o avião subindo na pista. Eu não sabia que essa máquina barulhenta tomando os ares te levaria para sempre embora para longe de mim. É claro que você voltou algumas vezes, trouxe presentes, me contou a sua visão do outro lado do mundo. Mas, em suas visitas, você realmente nunca mais voltou. Se eu soubesse que aquela viagem no táxi a caminho do aeroporto era a última vez que eu viveria com você uma mesma realidade, o que eu teria feito?
Ainda lembro do nosso último encontro, eu carregando mais do que nunca essa sensação de que éramos estranhos familiares. Você teve uma crise alérgica, fomos para urgência, não foi nada grave, mas fiquei me perguntando como não sabia que você era alérgico a abacaxi? Esse encontro foi o único que tivemos sendo os dois adultos, isso há mais de dez anos, talvez eu não fosse tão adulto assim. Era a primeira vez que eu via você como uma pessoa para além do meu irmão mais velho que foi embora para outro país. Te levei no meu tatuador, te apresentei a todos os meus amigos, bebemos juntos. Eu te falei um pouco sobre o meu mundo, meus anseios. Senti pela primeira vez a falta do que a nossa relação poderia ter sido.
E se você tivesse ficado? E se eu tivesse me interessado em manter contato? E se ainda fossemos uma família?
Ainda somos uma família?
Dos anos 1990 guardo na memória o clima, sinto o sabor da passagem do tempo. Aos domingos era comum É o tchan tocar no rádio da praia. As tardes da semana eram preenchidas por Vale a pena ver de novo. Nós quatro reunidos na sala de casa, a visão de uma família feliz com suas discussões sobre escola, notas, serviços de casa. Numa tarde qualquer você ostentava os oito anos de diferença em relação a mim, se colocando com orgulho como o irmão mais velho. Você me levou para sua escola e disse que era meu pai, você devia ter uns 14 anos, talvez? Era uma brincadeira boba entre seus amigos já adolescentes. Eu ainda começando a descobrir o mundo te enxergava como uma espécie de herói. Creio que entendi nossa relação ali naquele momento.
Anos depois, quando você falou que em maio iria embora eu não acreditei. O desespero de mainha aumentava semana após semana. Eu só acreditei quando eu e ela voltamos naquele táxi depois de ver seu avião decolar. Eu não sabia porque você queria tanto ir embora. Eu não sabia que ao voltar para casa e encontrar nosso quarto vazio, que aquele era o momento em que meus contornos começavam a se desintegrar.
Agora que você já viveu mais tempo em outras terras do que aqui, agora que dessas tardes em família só restam nós dois, me pergunto, por que você foi embora?