Nasci para o mundo em um dia igual a este, as quatro e quarenta e cinco da madrugada.
1.
Quando estava grávida de mim, minha mãe foi a uma consulta com seu médico que prontamente deu o veredito: isso é um mioma dona Rosa. Como os incômodos persistiam e relembrando as outras duas gravidezes, ela cogitou a possibilidade da terceira, ainda acreditando ser impossível já que havia feito a laqueadura há anos. Eis que ao compartilhar suas suspeitas com uma amiga ela indica outro médico que enfim confirma “em breve chegará ao mundo mais um menininho”. As suspeitas de minha mãe eram então verdadeiras, sem mioma, mas com mais uma criança.
Nasci no final do verão no início da década de 1990, fui para casa dois dias depois, ela ficou no hospital, agora iria garantir que o procedimento seria realmente efetuado. Sem mais surpresas, era eu a derradeira.
Por anos ouvi a história da minha chegada ao mundo ser contada nos mais variados ambientes. A intonação dependia do humor dela naquele momento, se estivesse com raiva de algo que fiz contava com uma fúria assustadora me chamando do mioma que agora dá mais trabalho, se estivesse feliz acrescentava um tom de humor que deixava as coisas um pouco mais leves, para minha alegria. Por vezes eu pensava que minha chegada ao mundo foi anunciada por um incômodo costurado a um desejo imenso de negação. Por vezes sentia que minha chegada era algo que precisava realmente acontecer, desafiando a realidade.
2.
Fui uma criança muito medrosa, a formação cristã criava uma nuvem de pavor ao meu redor, formulava novos medos o tempo inteiro do mais absoluto nada. Por fazer aniversário no dia 15 achava que ao completar 15 anos morreria ou perderia a visão, não sei se havia lido isso em algum lugar ou se foi só uma brincadeira do meu cérebro assustado. Nas semanas que antecederam ao meu aniversário de 15 anos, um pavor tomou conta de mim ao pensar que essa possibilidade poderia ser real. O fático dia chegou e ao ser acordado e perceber que as imagens ainda continuavam se formando nas minhas retinas fiquei aliviado. Acho que foi nesse dia que finalmente me permiti desligar das ideias cristãs que ainda abrigavam minha mente.
Esse foi o aniversário mais estranho de todos, era o primeiro sem ela, o primeiro acordando numa casa diferente, indo para uma escola estranha onde ninguém sabia que era meu aniversário. Nesse dia meu único presente foi um pen drive com alguns kB de capacidade.
3.
Era uma atividade muito comum em nosso dia-a-dia, acho que acontecia sempre que alguma mudança de móveis era realizada e fazia surgir do nada a grande caixa com os álbuns de fotos da família. Lembro do álbum grande de capa marrom dividido em três partes representando nós três. O meu era o que tinha menos fotos, compreensível, afinal era o mais novo. Eu adorava ouvi-la falar sobre o contexto de cada retrato, me sentia presente no momento registrado ali. Mas tinha um retrato em especial que sempre que o via a lembrança daquela tarde me invadia. Conseguia sentir o cheiro do bolo no forno prestes a solar, como todos que ela ousava fazer, escutava as risadas das piadinhas entre irmãs que olhavam seus filhos engatinhando na sala, sentia o sol entrando pela porta lá no final do corredor. Toda vez que esse retrato aparecia eu lembrava de mais detalhes desse dia, até que em uma tarde qualquer compartilhei minhas lembranças e ouvi um sonoro “mas você nem era nascido, essa foto é de 90". O choque me fez olhar o verso do retrato e perceber a data, era verdade, era impossível eu ter a memória desse dia, apesar dele ainda hoje ser bastante vívido em mim. Será que naquele momento eu já era o mioma prestes a se romper?
4.
Abri meus olhos para o mundo no meu aniversário de 4 anos, sei disso porque lembro do conjuntinho xadrez vermelho que vestia, olhando os retratos me vejo ali ao lado de Thiago, cada um soprando uma velinha, ele de 12 anos. Mas a minha primeira lembrança não é desse momento, apesar dele estar vivido em mim. Desse dia o que lembro mesmo é das horas anteriores brincando com meu vizinho, lembro dele me falar sobre aniversários, doces, brincadeiras, lembro da minha ansiedade de poder chegar em casa e finalmente viver aquilo que ele tava falando. Era a primeira comemoração do meu aniversário, era minha primeira memória se formando. Quando lembro disso, me sinto como um extraterrestre chegando em um mundo novo e começando a explorar tudo ao redor. Não lembro de ter tido outras festas de aniversário antes, os retratos me mostram uma festinha de 1 aninho típica dos anos 1990, as garrafas de cerveja de vidro, os penteados afros, a simplicidade de uma segunda-feira, mas desse não tenho lembrança. Foi quando fiz quatro anos que nasci para o mundo, pelo menos na minha cabeça.
5.
No último aniversário que ela passou comigo a morte se fez presente, parecia que as linhas de chegada e partida haviam se cruzado. Ela foi uma das últimas pessoas a falar com uma vizinha que minutos depois tirara a própria vida. Isso a abalou tanto, ela que já estava na fila do transplante de coração lutando para ter mais alguns anos por aqui. Quando ela me contou o que aconteceu me senti igual ao dia que pela televisão eu tinha visto que o grande Tim Maia morrera, era um dia 15 de março também, a família ao redor da TV comentava a fatalidade enquanto me parabenizavam pelos recém seis anos no mundo.
No meu último aniversário com ela a gente não sabia que em alguns meses ela também atravessaria a fronteira da vida e da morte. Uns dias antes foi aniversário do meu irmão mais velho, ele acabara de casar com o homem que amava, nos recebemos as fotos da cerimônia, ela ainda não aceitava a situação, mas havia felicidade em participar de alguma forma. A nova idade dos filhos, o casamento, a minha entrada na adolescência, a morte da vizinha, a luta pela vida. Naquele dia eu nem tinha clima para celebrar os recém 14 anos, não me sentia mais uma criança, mas ainda tinha muita dificuldade em entender o que esperar da vida. Sentei na porta a noite com meus amigos, ainda muito impressionado com todos os mistérios ao meu redor. Sinto que ali eu também morri um pouquinho.
6.
Nunca foi uma coisa fixa na agenda a celebração do meu aniversário, mas completar 18 anos vivendo o último ano escolar acendeu alguma coisa em mim. Organizei uma noite num rodízio de pizza com meus amigos, foi a primeira vez que fiz algo do tipo. Quase 10 anos depois disso, e muita comemorações, voltei a uma pizzaria reunido com amigos, pairava no ar o medo do coronavírus, que naquele momento estava prestes a nos colocar presos em casa. A primeira pessoa identificada com Covid em Aracaju havia sido informada algumas horas antes, o medo era a conversa principal na mesa. Os limites entre nascimento e morte me pegaram de novo.
Cinco anos depois comemoro 33 anos, sinto que há pouco tempo nasci pro mundo, essa é uma frase que uso muito nas sessões de análise, tenho me sentido cada vez mais vivo, a cada novo aniversário, renasço e renasço novamente.
Belo texto! Feliz vida!
Quanta lindeza nessa carta sensível, Victor! Adorei conhecer um pouquinho da sua história, obrigada por compartilhar.