Lila Cerulo, a carta XVI e os terremotos internos.
Neste retorno escrevo sobre o sentimento de mudança radical e os processos para continuar a vida após um abalo sísmico pessoal.
Aviso: este texto pode conter informações importantes sobre a narrativa de A história da menina perdida e Todos nós desconhecidos.
Sempre fui interessado pelo lado oculto da vida. Ao longo dos anos tive a oportunidade de conhecer mais de perto alguns elementos, me aproximei do tarô, estudei astrologia, li sobre quiromancia e tantas outras coisas. Certa vez, em meio a essas aproximações, uma amiga, também bastante interessada pelo lado oculto do universo, leu minha mão. Entre esticar a palma e analisar as linhas, com rosto franzido em meio a tentativa de traduzir meu destino, ela cravou firme sua interpretação: um grande abalo divide sua vida em dois momentos, a parte boa é que essa separação já ocorreu.
O arcano XVI no tarô na representação imagética ilustrada por Pamela Colman Smith mostra um raio que vem do céu atingindo a ponta de uma torre que se equilibra, ao que parece, na ponta de um morro. Desse impacto, uma coroa e dois homens caem desesperados em direção ao chão. O fundo da carta é preto e além das chamas em pontos da torre, 23 pontinhas desprendem do impacto. Esta carta é uma das mais temidas, justamente por representar o abalo sísmico do fim. Mas não é qualquer fim, é a finalização abrupta que tira nossos pés do chão, nem a realeza consegue se manter firme quando o raio do inesperado atinge o que se pensa sólido.
Há países onde vulcões ocupam a paisagem natural convivendo em harmonia com outros seres vivos. A Islândia é um belo exemplo disso, trago esse país personificado em Björk, cantora que dedica algumas de suas mais belas canções e experimentações visuais para ilustrar a relação de respeito com essa força da natureza. Nápoles, cidade italiana, vive a sombra do vesúvio, a região concentra uma formação geológica propícia a desastres naturais, como o ocorrido em 1980 com o terremoto de Irpinia, uma força avassaladora que deixou quase 3 mil mortos e mais de 7 mil feridos. Na tetralogia napolitana Elena Ferrante ilustra esse acontecimento amarrando esse momento as personagens Lila e Lenu, a primeira sofre um abalo irrecuperável, ao perceber a instabilidade do chão sua perspectiva de vida muda completamente, a desmarginação, processo apresentado ao longo da saga, ganha forma por completo. Fator que se tornará ainda mais decisivo quando em meio a um dia comum sua filha some sem deixar rastros, reafirmando para a personagem que nada é realmente seguro.
O terremoto - o terremoto de 23 de novembro de 1980, entrou nos nossos ossos. Afugentou o sua devastação infinita hábito da estabilidade e da solidez, a certeza de que cada instante seria idêntico ao sucessivo, a familiaridade dos sons e dos gestos. Sua reconhecibilidade certa. Infiltrou-se a suspeita quanto a qualquer segurança O pendor a acreditar em toda profecia de desgraça, uma atenção angustiada aos sinais de friabilidade do mundo, e foi difícil recuperar o controle. Segundos e segundos e segundos que não terminavam nunca. (A história da menina perdida - Elena Ferrante, p. 165)
Um abalo sísmico. A quebra do cotidiano de um modo inesperado. O corte na linha da vida. A mudança abrupta. A perda da firmeza do chão. A menina que se perde em meio a multidão e ninguém nunca mais a encontra.
Perder
A
Estabilidade
O raio que destrói a torre vem sem aviso, até podem existir sinais que por algum motivo deixamos passar ou ignoramos de propósito, o que faz com que a destruição pareça ainda maior. Quando esse raio me atingiu, eu não tinha ideia da dimensão dos estragos que ele causaria em minha vida, ao ponto de mesmo quase duas décadas depois, os reflexos ainda podem ser sentidos intensamente. Lenu narra a passagem do terremoto na vida de Lila anos após o ocorrido, talvez naquele momento ela conseguisse compreender as dimensões da quebra de sua amiga e expressasse em palavras os sentimentos. Me sinto um pouco assim ao elaborar do divã os fios que me levam de volta ao momento da ruptura. O momento em que a carta da torre atravessa minha trajetória revelando um vulcão particular que entrava em erupção sem eu ao menos me dá conta.
Era uma sexta-feira de julho, semanas finais das férias, o Brasil acabava de perder a copa do mundo da Alemanha. Eu tinha há poucas semanas tirado minha primeira nota vermelha em inglês e matemática, fato que me levaria meses a frente a enfrentar uma recuperação, a sétima série tinha suas dificuldades. Avril Lavigne se preparava para lançar seu terceiro álbum, aquele trabalho que seria um divisor de águas em sua carreira, e eu passava horas em frente ao computador lendo notícias sobre a diva. Distraído pelas discussões em fóruns, não ouvi quando meu irmão abriu a porta de casa se escorando na parede chorando. A música tocava em minhas caixinhas de som, o que me impedia de ouvi seu chamado. Quando finalmente notei sua presença, não era preciso falar mais nada. Mil coisas passaram pela minha cabeça naquele momento, coisas práticas, tipo onde e com quem eu iria morar agora? Quem vai cuidar de mim? Posso ser considerado órfão? Sou eu que preciso avisar aos meus amigos? Ainda bem que ela nunca vai saber de minha nota baixa em matemática, ela ia ficar arrasada. Ela nunca vai saber. Ela nunca mais. Nunca. Eu nunca mais ouvirei a voz dela.
O problema de ser atravessado pelo raio da torre é que você só tem ideia dos estragos muito tempo depois. É claro que imediatamente você consegue sentir os escombros batendo na sua cabeça. É possível enxergar através da fumaça da destruição flashes do que permaneceu entre tudo que foi destruído. Uma vez que seus pés sentem pela primeira vez a terra tremer, é muito difícil confiar que ela sempre estará lá para te segurar. Mas, ao mesmo tempo, todos os destroços começam a ganhar novos formatos, aquelas pedras ali espalhadas vão ganhando novas formas, a movimentação natural da vida. E aí você continua em seu caminho dando continuidade, desfrutando da estabilidade. Até que em um momento de distração suas pernas falham te lembrando que a qualquer momento tudo pode desmoronar de novo?
Mas será?
E aí você começa a perceber que aquilo que você acha que superou, ainda tá lá esperando o momento certo para reaparecer. É possível se recuperar dos efeitos de um terremoto? Lila encontrou meios para se manter presa ao chão daquela cidade que uma vez havia traído, acumulando ao máximo informações sobre sua história. Björk em meio a perdas celebra através da arte, inclusive juntando a força da natureza a suas emoções, gerando trabalhos incríveis. Após a destruição da Torre o brilho da Estrela pode ser sentido em sua máxima potência.
Eu não sei como as pessoas lidam com esses momentos de mudanças radicais, onde é necessário recalcular as rotas. Assistindo esses dias ao filme Todos nós desconhecidos, me deparei com Adam, personagem que ainda criança tem uma perda irreparável e após isso sua vida muda completamente. Adulto, solitário e precisando retornar a certos laços afetivos, ele começa a conversar com essas memórias fantasmas, resgatando um pouco do que havia perdido. Seus pais, mortos em um acidente de carro, voltam para viver momentos de troca de afeto, justamente o que ele estava precisando em meio a extrema solidão. Uma cena em particular me tocou bastante, o momento em que ele tem a oportunidade de se apresentar enquanto adulto para os pais, que não conheceram essa sua versão. Fiquei pensando em como a perda brusca da estabilidade da família afeta ele diariamente. Ele fala que até sonhava com todas as viagens que poderia fazer com a mãe enquanto crescia, planos que só ficaram em sua imaginação. Fico pensando o quanto de sua solidão é um reflexo direto dessa perda.
Não ter lembrança da voz de minha mãe é uma das coisas que mais me dói. Mesmo 18 anos depois de sua morte ainda tento em vão lembrar do tom de sua risada, fantasio com um vídeo em que ela gravou para o aniversário de uma colega de trabalhos alguns anos antes de falecer, por onde será que anda esse vídeo? Mas, tem outras coisas que me doem, o fato de que ela nunca vai me conhecer de verdade, nas linhas do tempo ela sempre terá o Victor de 14 anos. Uma criança amedrontada enfrentando pela primeira vez as consequências do raio da torre.
Quando minha amiga leu minha mão ressaltou a perda que marca minha vida, praticamente a dividindo em dois momentos, lembro de pensar que parecia pela primeira vez que alguém conseguia descrever meu sentimento. Sentado no divã me reaproximo desse sentimento tendo a oportunidade de lhe dar sentido. É estranho pensar que houve outra vida, que sou resultado dos escombros, o quanto carrego dos momentos de felicidade de antes? Assim com Adam, não consigo deixar de pensar nos dias de antes, não gostaria de ter a mesma experiência que ele teve, convivo de outra forma com meus fantasmas, mas cada vez mais percebo como fui e sou moldado por essa ruptura, como ela ainda faz parte de mim. Assim como a minha linha de vida na palma da mão ilustra bem isso.