você não me conhece, mas gostaria de dedicar umas palavras a você,
não me recordo exatamente quando foi a primeira vez que ouvi sua voz. lembro apenas do pavor que sentia toda dia perto das nove horas quando ouvia aquela melodia, meu corpo se retesava. eu era uma criança assustada, não sabia ainda que meu destino estava traçado no mar que você entoava. o canto vinha de longe, de lá do meio do mar, não era canto de gente, bonito de admirar. escutava perplexo enquanto observava o mar ilustrado na minha telinha embalado por sua cantiga. hoje em dia acho graça desse pavor todo que senti. você também já quis fugir de medo? esse foi meu primeiro contato consciente com você, mas claro que aquela altura já tinha escutado sua voz em outras canções, mesmo que não soubesse que era você, mesmo sem saber de sua história. voltamos a nos encontrar na mesma telinha que anos antes me apavorava. agora na história sobre disputas em um mundo de famosos e não famosos, você além de emprestar uma canção também marcou presença numa participação especial. vibrei do sofá com sua beleza e elegância, sua pose característica despertaram minha atenção. sua participação foi pequena, mas ilustrava sua força. houve comentários nos programas semanais que eu consumia ferozmente e só então comecei a entender sua grandeza. não associei a mulher elegante e forte àquela voz que alguns anos antes despertava o meu medo mais profundo. aprendi naquela semana quem você era. ainda não tinha dimensão do quão gigante você era, quão longo era seu legado. não conhecia ainda a sua força e capacidade de se renovar. não conhecia sua sede pela vida, mas de alguma forma fui impactado, ainda que não conseguisse compreender a fundo a dimensão do sentimento, mas era impossível não se afetar por você. sua voz transmitia muito mais do que apenas as letras que interpretava. nessa época ainda lembro de outro encontro nosso na telinha. a sátira de deus nos acuda começa com você clamando por um brasil do qual você sempre ajudou a moldar. durante o período de férias, o início de minhas tardes começava com você e seu clamor. de algum modo sempre te senti presente, Gal. suas canções despertavam os mais diversos sentimentos, sua imagem vista até então sempre ligada a alguma novela, me trazia o conforto de tardes da infância, aquela segurança que fica pra sempre sabe? até quando sua voz me transportava para um mundo de insegurança, ainda assim era como uma mensagem cifrada, me falando que mesmo em dificuldades, poderia contar com você.
há alguns anos voltamos a nos encontrar. não que eu tivesse perdido totalmente você de vista, mas foi só num momento de reclusão e tristeza que suas canções me salvaram. você com toda intensidade que só lhe cabia, pegou toda tristeza do meu peito e cantou, cantou, cantou, afastando tudo para longe. e eu cantei com você. estratosférica. você me levou para fora da terra. divina maravilhosa. me mostrou ser preciso estar atento e forte e não temos tempo de temer a morte. eu corpo de adulto e cabeça ainda tão povoada de medos da infância, como se fosse aquela criança em frente a telinha com medo de Yemanjá e que te ouvia com uma mistura de pavor e espanto, voltava agora a te escutar, dessa vez ouvindo também a voz Dela. sabe Gal, acredito fielmente que vocês me ajudaram nessa travessia. doces bárbaros que são. mas era você especialmente que trazia a intensidade da beleza. sua voz trovão resplandescente me colocou dentro da realidade. como podia eu estar fora da terra e ao mesmo tempo tão dentro e envolvido por essa força estranha? foi sua voz, Gal, que me trouxe de volta. você tão terra, filha dele né? me deu chão. sua voz vinha de um lugar tão profundo e carregava a infinidade de tudo. só você sabia como usar todos esses sentimentos. como ouvir o fa-tal de novo sem derramar rios de lágrimas com sua interpretação de como 2 e 2 ou perola negra? você dizia com modéstia que não era a maior cantora do brasil, mas com certeza era uma das maires. pra mim você é a maior Gal. o estrondo misterioso da terra toma forma em sua voz.
Uma das maiores alegrias que guardo no peito é ter te visto ao vivo. era fevereiro de 2020, veja só, eu não sabia que o mundo despencaria em nossas cabeças em menos de um mês. eu acho que o que me ajudou -de novo- a manter o pé no chão foi o eco de sua voz. a alegria que senti em estar presente diante de você, com aquele vestido rosa, abrindo aquela caixinha luminosa, você trouxe luz e alegria para aquele teatro, para nossas vidas. tantas vezes. você pra mim é o sinônimo de vida, por isso é tão estranho saber que não teremos mais sua força perto de nós. você sempre se manteve tão atenta, se renovando, se mantendo sempre relevante. te ouvir é sentir a presença da vida correr pelas nossas veias, e é isso que permanecerá Gal. esses dias vi o último show do Bituca, que dor falar “último show”, que dor não ter visto este seu amigo querido ao vivo, que dor saber que vocês todos, referências supremas, estão lentamente apagando as luzes do palco. vi há anos outra amiga sua dar adeus a agitação dos palcos, Rita Lee, foi triste, foi lindo um mix de sentimentos. Bituca lhe dedicou o show, foi emocionante. Gal que vazio você deixa.
mas não quero pensar no vazio, quero preencher a dor com a sua alegria, sua coragem, sua força e capacidade de estar sempre seguindo em frente. sendo sempre essa Gal fa-tal. obrigado por tudo Gal, escrevo essas palavras derramando lágrimas, a tristeza e a dor são fortes, mas sei que seguiremos todos guiados por sua voz.
obrigado por tudo Gal Costa.