E se eu quiser falar com deus?
na semana em que completo cinco anos como iniciado para orixá reflito sobre minha relação com deus e religião, além disso faço um pedido.
antes de tudo, um pedido: vou passar meu chapéu.
Alô pra você que me ler há muito tempo e pra você que chegou agora por aqui, sejam bem vindos! Esta newsletter foi criada em 2021, o famigerado ano II da pandemia, e a constância da escrita e publicação regular, além, claro, das trocas, tem me ajudado bastante a entender e abraçar meu processo criativo. Em algumas dessas trocas surgiu o tema de contribuição financeira em relação aos textos produzidos, refleti sobre algumas maneiras e resolvi criar uma campanha contínua no apoia-se. Você assinante desta newsletter continuará a receber todos os textos em sua caixa de entrada normalmente, todos os dias 15 e 30 do mês, mas, caso queira, poderá me ajudar enviando qualquer valor, qualquer valor mesmo através da campanha no botão abaixo. Com 5 ou10 reais ao mês -ou literalmente qualquer valor a sua escolha - você me ajuda a continuar povoando o mundo com palavras.
e sem mais delongas, vamos ao texto de hoje:
o caminho da religião, ou os descaminhos que levam a deus.
Eu me sentia pequenininho percorrendo aquele espaço imenso. Escondido entre corredores e portas, havia um jardim. O som dos pássaros, a inusitada tartaruga que poderia a qualquer momento se aproximar, destoava da agitação da avenida movimentada. As pesadas portas de madeira pareciam separar dois mundos distintos, lá fora correria, dentro a paz infinita dos encontros inexplicáveis. Foram raras às vezes em que pude estar ali, o espaço era reservado para moradia dos padres e freiras, além dos escritórios e outros departamentos. As visitas sempre tinham motivação lógica e clara, geralmente uma reunião após a missa ou uma conversa em grupo com o padre, ou qualquer outra coisa marcada pela aleatoriedade que poderiam me levar aquele lugar. O jardim dentro da igreja. E para mim esses momentos representavam onde mais perto cheguei de deus. Antes de tirar ele de minha vida.
Posso estar sendo traído pela memória. Esse espaço pode ter apenas algumas plantas espalhadas em um pequeno corredor. O barulho dos pássaros de repente foi adicionado nas minhas lembranças apenas. Mas durante muito tempo a imagem de deus em minha cabeça se resumia a esse lugar. Não era o altar da igreja com sua eterna luz vermelha representando a presença de deus, mas aquele espaço quase oculto aos olhos de todos, onde o acesso dependia de uma série de acasos. Lembro do medo, das portas de madeira que circundavam o jardim, do silêncio quase tangível, das freiras com suas vestimentas pesadas que vez ou outra poderiam ser avistadas por ali, do arrastar dos pés dos padres.
No natal tinha sempre a missa do galo, participar dela nunca foi uma imposição, o que transformava a experiência em algo de certo modo até prazeroso, diferente das missas semanais e da catequese. Em uma véspera de natal, talvez o último antes da ruptura, enquanto ensaiava a sentar no banco, recebi uma advertência, nas festas ninguém reclama de ficar em pé, desisti de sentar, continuei em pé até o final com medo. Esse sempre foi o sentimento que me acompanhou durante os anos de imposição de uma fé que não era minha. A paz de chegar no jardim secreto e ter meu encontro com deus era rara, o comum era os sussurros de canto da boca espalhando medo, por sentar no meio da fala do padre, por se desviar dos padrões, por sentir raiva, por apenas ser eu. Desde muito cedo entendi que aquele não era meu deus e que teria que buscar meu jardim de paz em outro lugar.
*
Minha mãe, professora de história e de seu jeito meio torto, contadora de causos históricos, me ensinou algumas coisas sobre os grandes eventos históricos. Sempre que a pergunta “quem descobriu o Brasil” surgia e eu na minha empolgação infantil para falar o mais rápido possível Pedro Alvares Cabral, ela chamava minha atenção, na maioria das vezes de forma bem humorada, mas nem sempre, e contava a história de que na verdade pedrinho não descobriu nada. Nada foi descoberto. O grito de independência ou morte? Falso. Tudo uma ilusão histórica. Ela ainda gostava de falar que esses ditos heróis de nossa história estavam no momento consagrado na verdade com uma baita dor de barriga. Acredito que esse era o jeito dela de me alertar existirem verdades para além do que era estabelecido como a verdade única.
Mainha era católica, mas era raramente vista na missa ou se confessando. Tínhamos uma bíblia em casa, grande, com capa dura e folhas douradas, ficava aberta na sala acima da televisão, uma visão simbólica. Ela falava os graças a deus e tudo mais. Mas, no fundo parecia sempre buscar uma história atrás da história única. Na escola minha matéria favorita era justamente história. Na quinta série começamos os assuntos das cruzadas, as guerras santas, o professor começou a explicar sobre o poder que a igreja católica, enquanto forte instituição, mantinha perante a sociedade. Ele explicou o poder do mito de Eva e a visão da mulher como inferior dentro da sociedade patriarcal. Falou do poder da igreja em relação à escravidão, do controle ao longo da era medieval. Aquelas aulas mudaram minha vida.
Comecei a falar sobre isso com mainha, ela por algum motivo ainda me obrigava a ir à missa, talvez para ter a companhia das outras crianças, mas eu comecei a recusar, até que ela aceitou meu afastamento do sagrado. Meu rompimento definitivo com a igreja católica foi justamente no momento em que ela rompeu o contrato com a vida na terra. Quanto mais de história eu estudava, quando mais das histórias ocultas eu ia assimilando, menos confortável ficava de entrar naquele enorme salão e dos améns e paz do senhor. O jardim que me aterrorizava, o deus mantido aceso através de uma luz vermelha num altar, tornavam-se cada vez mais assustador. Não por que iria descobrir meus pecados, mas por tudo que já foi feito em seu nome ao longo da história. Romper com ele foi um divisor de águas, mas o vazio que ele deixou, foi pesado para suportar sozinho.
*
Nós não namorávamos, mas era como se fosse. Pelo tempo, pelo convívio e principalmente, pelo sentimento. Quando ele me falou que iria jogar búzios com um pai de santo perto da casa dele, gelei. Aquela altura tudo que sabia sobre religiões afro tinham um toque muito denso de racismo, aliadas a uma lembrança muito forte de visitas com mainha a terreiros na infância. E ainda mais, estava de relações cortadas com deus, o sentimento impedia de enxergar outros deuses. Foram dias de apreensão até o tal jogo acontecer e ele me falar o que rolou lá. Conselhos sobre o futuro, receitas de banhos de ervas, considerações sobre caminhos espirituais, etc., etc., até que chegou num ponto que mais temia, nosso relacionamento. Não lembro o que foi dito além de que não teria futuro (real, rs). Aquilo me abalou. Não tanto pela previsão do fim, mas por um deus estar falando indiretamente sobre mim.
Abstrai e continuei minha relação de negação com deuses. Mas, aquele buraco só crescia. Eu tinha raiva de deus, por todo aspecto histórico do que a humanidade em seu nome espalhou no mundo. Tinha raiva de deus por ele ter levado minha mãe. Tinha raiva de deus porque ele não me aceitaria se eu não tinha outra escolha além de ser como sou. A inquietação crescente me levou, em dois momentos, a chorar na beira do mar e compartilhar com as ondas do mar minhas dores. Até que recebi um convite para o famigerado jogo de búzios, a ideia me pareceu estranha, lembrei do antigo relacionamento e do sentimento, relutei um pouco mas acabei indo.
Não foi exatamente medo que senti quando me vi sentado naquela mesa em frente a búzios e outros objetos que prometiam revelar não só meu futuro, como propor soluções para minha vida. O tanto que chorei em frente a mulher, aquela altura uma completa desconhecida mas que ao longo dos meses passaria a ser chamada de mãe. Aquele foi meu primeiro contato com outros deuses. Deidades que estavam ao meu lado, que se espalhavam por um panteão extenso e que pareciam revelar e aplacar minhas dores. Foi um reencontro. Relutei um pouco para aceitar voltar a ter fé de forma sistematizada, precisei ouvir o que os orixás me diziam, precisei fazer as pazes com deus. Mas agora ele não era aquele que me causava horror e medo escondido nos jardins da igreja. Era o mar, para quem eu sussurrei meu pedido de socorro, e fui ouvido. Era a ventania que assoprava em meu rosto, o arco-íris que surgia ao fim do dia e me lembrava que a vida sempre convida para celebrar.
Escrevo essas palavras hoje pois há cinco anos meu corpo deixou de ser apenas química, se transformando em morada de orixá. Ainda carrego questões, ainda brigo com deus, as pesadas paredes da igreja ainda insistem em aprisionar meus pensamentos. Mas agora converso com outros deuses, viajo para outros lugares e meu corpo dança em outro ritmo.
para além do texto.
🙏🏽 Ao fim do primeiro semestre de 2011, eu era apenas um jovem estudante de audiovisual tentando lidar com a quantidade de informações que o curso jogava na minha cabeça. Uma despretensiosa ida ao cinema nas férias aumentou o caos de informações e desejos e possibilidades, ao longo das mais de três horas de projeção de A árvore da vida de Terrence Malik, vi minha vida se expandir a níveis nunca vistos. A relação pai-filho ilustrada pela relação deuspai-filho me abalou demais. A forma como a perspectiva religiosa se atrela as relações familiares, o interno e externo, o universal e o mais íntimo unidos, como dizem os jovens, alugou um apartamento na minha cabeça. Talvez o impulso pela busca da resolução espiritual tenha vindo dessa ida ao cinema e das reflexões ao longo dos meses que seguiram. Talvez não. Mas fica a dica de filme. (aliás, que ano foi aquele de 2011, a visão do cometa Melancolia destruindo a terra e todos os sentimentos internos, também é uma das idas ao cinema que mais me abalaram na vida.).
🙏🏽 Nas aulas de catequismo que fiz ao longo de dois anos na igreja Espirito Santo um dos momentos que menos me interessavam eram os ensinamentos da bíblia. Achava os personagens chatos, situações por demais complexas e as interpretações me pareciam muito simples. Nunca mais peguei numa bíblia. Há alguns meses comecei a pensar um pouco diferente, graças aos textos da Ariela K que escreve a maravilhosa newsletter A delirante. Como a autora define “A cada duas semanas, eu publico uma edição da série bíblica, um projeto de análise textual e reflexão pessoal na fronteira entre o secular e o sagrado. Minha perspectiva é judaica e não-religiosa” Reencontrar os textos bílicos com outras perspectivas me fez repensar os ensinamentos engessados que absolvi da minha formação cristã e despertou um interesse para além do aspecto espiritual que a bíblia é mantida nas instituições religiosas. Há muito a explorar nesses escritos e os textos da Ariela despertam muitas questões.
🙏🏽 O documentário “Eu, Oxum” dirigido pela sergipana Helóa e Martha Sales, ilustram o processo de preparação do corpo enquanto morada de orixá. As diretoras vão em busca dessa relação tendo como parâmetro Oxum, orixá dos rios.
Victor, sua newsletter é um verdadeiro projeto literário. Parabéns.
Nossa, Victor, o seu texto me deixou uma impressão tão bonita, terminei sentindo uma coisa tão boa, e que alegria vc me deu ao mencionar a minha newsletter lá embaixo! Adorei o texto. É um prazer ser sua leitora e fico mto feliz de vc ser meu leitor também!