aos treze
a chegada do temido COMPUTADOR e da INTERNET, o desabrochar de sentimentos confusos e a paixão nacional oficial: a turma da mônica.
Na virada dos anos noventa para os dois mil, o famigerado bug do milênio me aterrorizava e a perspectiva de universos alternativos1 me atormentava, tudo isso provocado pelas histórias que meu irmão, Thiagogita,2 me contava com o intuito de despertar meu medo. Ele sempre conseguia, eu era muito medroso. Essa foi a época em que a internet chegou na nossa casa. Ainda lembro dos preparativos para recebê-la, a instalação da linha telefônica (sim, havíamos cruzado toda a década de noventa, na verdade, todas as décadas anteriores, sem telefone fixo), o aterramento do fio-terra na calçada - medida providenciada para que não queimasse todos os equipamentos eletrônicos com a chegada dessa nova máquina desconhecida- e claro, a aquisição de um móvel apropriado, com certeza você sabe exatamente o modelo.
Houve discussões para decidir o melhor lugar para abrigar o tal do computador, numa eleição nem um pouco democrática, venceu o quarto de thiago. No caso, nosso quarto, acabando de uma vez por todas com meu sossego e consequentemente com o de mainha pois, eu ia todas as noites dormir com ela. Na verdade thiago era o único residente realmente interessado em ser absolvido pelas ondas digitais, a nós, eu, mainha e meu outro irmão, pouco interessava essa novíssima forma de interação. Mainha com certeza, ainda deslumbrada com as lições aprendidas com Glorinha Perez3 , temia que a máquina usurpasse seu filho para longe. Nesse ponto ela estava certa, mas isso fica para depois.
Eu vi toda essa movimentação da chegada do computador e internet na minha casa como um evento magnifico, mas que não me incluía. A máquina ficava em meu quarto, mas pouco influenciava em minha vida, meus brinquedos ainda eram a principal fonte de liberação de minha imaginação. As revistas recreios já anunciavam as vantagens desse novo mundo virtual, o meu desenho favorito, Digimon, se baseava nas interações entre o mundo físico e o digital. Mas, naquele momento, ainda não via tanta graça assim naquele monstruoso objeto.
Thiago era o filho favorito de dona Rosa, ninguém tinha dúvidas disso, portanto todos seus pedidos eram atendidos, ainda que sob fortes desavenças resolvidas em uma reunião em frente ao plim plim na sala de casa. Encontros que lentamente foram sumindo de nossa rotina com o andamento do novo milênio. Um desses pedidos, um pouco antes da chegada do pc, foi a tevê a cabo, e foi assim que um novo mundo se abriu para o victor criança e de fato tornei-me uma espécie de Angélica absolvida pelo fluxo televiso. Claro, dependendo sempre dos horários que Thiago deixava livre e desde que mainha pudesse assistir à novela das oito.
Tudo isso acontecia em meio a uma movimentação que me pegou de surpresa. A infância estava desaparecendo, coisas estranhas aconteciam no meu corpo, desejos confusos tomavam conta de minha mente, novos sentimentos competiam para chamar atenção me deixando desesperado. Enquanto uma melancolia se espalhava por todo cenário, eu escolhia simplesmente ignorar tudo e continuar em frente a tevê assistindo Padrinhos Mágicos enquanto o desenho ia perdendo o sentido bem diante dos meus olhos.
Foi em meio a esse cenário de domínio tecnológico, melancolia e confusão que me vi num limbo de transformação: a pré adolescência.
Os finais de semana não eram apenas dias de descanso longe da escola, eram dias dedicados a igreja. As tardes de sábado começavam com reuniões de catequese no pátio interno ou no amplo salão da paróquia. Já as tardes de domingo eram reservadas para a missa especialmente montada para a criançada, já muito mais interessada em fofocar do que em escutar o falatório do padre. A recompensa vinha a noite com a pipoca cheíssima de leite condensado, coco e manteiga comprada do vendedor sabiamente posicionado na porta da igreja. Claro que havia espaço na agenda para outras atividades, as idas ao cinema/shopping, os dias de praia e piscina, as idas à casa dos colegas. Mas os compromissos na paróquia Santo Antônio marcavam permanentemente os finais de semana no início dos anos dois mil.
O crescimento espiritual não era o único motivo para tamanha dedicação. A oportunidade de socializar para além dos muros da escola, com pessoas diferentes, parecia atrair muito mais os pré-adolescentes que frequentavam o espaço. As tardes de sábado iniciavam no amplo salão, dezenas de jovens borbulhando hormônios se reuniam, é claro que silêncio era a última coisa que poderia ter. Dali pequenos grupos eram formados e o aprendizado sobre os mistérios de Fátima e lições sobre como ler corretamente a bíblia aconteciam, mas o que realmente parecia manter o espírito aquecido eram esses pequenos atos de liberdade e socialização.
Havia também as reuniões do grupo de teatro4 . (sim, eu fiz teatro na igreja, estreei algumas peças montadas no altar diante dos olhos Dele, em uma delas fui o locutor de rádio no sucesso de dia das mães acorda dona Maria! Larguei os palcos -ou altares- depois do sucesso da encenação da Paixão de Cristo onde fui o figurante #035) Momentos de socialização onde executávamos a raiz melodramática e fingíamos viver em uma temporada de Malhação, inclusive, em um desses encontros, tal qual a vagabanda declarei que o grupo, assim como a minha amizade com JC estavam encerrados.
Meu rompimento com a igreja alterou muito mais do que apenas a rotina do final de semana. A questão da culpa cristã, principalmente em relação a minha sexualidade, me perseguiram por bastante tempo. E nessa época em que meus amigos vivenciavam os primeiros beijos, paixonites e flertes descontrolados em todos os espaços sociais possíveis, eu me sentia cada vez mais distante. Minha dificuldade em lidar com o despertar dos sentimentos por outros garotos, associado a uma melancolia persistente e paralisante, me deixavam meio distante de tudo e de todos. Encontrava felicidade em horas e horas na programação do cartoon network, nicklodeon e MTV6.
Quando Thiago anunciou sua partida, deixando para trás O computador estrategicamente posicionado em meu quarto, foi um daqueles momentos que sabemos que a vida nunca mais seguirá pelo mesmo rumo. Foi meu ponto de virada, meu ponto de ruptura para a criação da personalidade victor de um multiverso aleatório. Ter acesso regular a internet me possibilitou finalmente começar a entender várias coisas sobre mim mesmo, as longas horas conversando com estranhos em fóruns de bandas emo, jogando neopets e escrevendo fanfics de novelas da Globo7 em comunidades do ortkut me possibilitaram entender minha sexualidade e gerir um pouco melhor meus sentimentos.
Fora do meu quartinho meus amigos começavam a dar seus primeiros passos no mundão dos vastos sentimentos, ouvia por telefone as aventuras dos primeiros beijos, interagia meio sem curiosidade em meio a socialização do flerte no bairro, achava tudo meio sem graça na verdade e fui ficando cada vez menos presente nessas interações, me transmutando cada vez mais em pixels. As emoções da minha vida aconteciam majoritariamente via tela do pc. Nada muito diferente dos anos de isolamento pandêmicos.
O contato com estranhos de outras cidades, muitos que tornaram-se grandes amigos, me fazia ter uma visão limitada de tudo que acontecia bem debaixo do meu nariz. Valorizava demais os grandes centros culturais, vislumbrava uma vida completamente alheia a que levava. Talvez a liberdade que ansiava estivesse ligada a necessidade de viver como um jovem gay de forma plena, podendo se apaixonar, trocar beijinhos na praça da igreja, compartilhar com os amigos a emoção de segurar sem querer a mão do crush. De alguma forma eu só conseguia viver isso através da internet.
Há algumas semanas assisti à série da Turma da Mônica, dei o play sem esperar muita coisa. Já tinha assistido aos filmes, lidos os quadrinhos especiais, enfim, tinha feito o dever de casa, mas nada havia me preparado para a enxurrada de sentimentos e memórias despertados pela produção. Para além da história maravilhosa e dos personagens bens estruturados e dos arcos narrativos bem trabalhados e ambientação 100% perfeita, a série ainda me levou numa viagem sentimental para minha infância/pré-adolescência. Anos que a turminha da mônica eram minhas companheiras fiéis.8
Na série os personagens enfrentam as transições dessa fase tão esquisita que é a pré adolescência. Adoro que logo no início uma fala determina o comportamento de todos personagens: se eu não sou mais criança e ainda não sou adolescente, o que eu sou então? Um crime ocorre na festa do clube da Frufu. Todos são suspeitos. Em meio a investigação embarcamos com a turminha numa jornada de transformação, tão típica desse período de nossas vidas. Ter assistido à série me levou de volta para esses anos tão turbulentos e sem querer me vi mais uma vez compartilhando memórias & lembranças da infância.
Caso tenha gostado da leitura, compartilhe com seus amigos. Eu agradeço.
Até mais e obrigado pelos peixes!
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me admira a cultura pop ter demorado décadas para popularizar o multiverso.
essa era a época onde os adolescentes amigos de meu irmão, se reuniam lá na nossa sala para assistir à saga dos Saiyajin. minha mãe ou era expulsa da sala perdendo algum sucesso do walcy carrasco, ou ainda não havia chegado do trabalho para acabar com a reunião ensandecidas dos nerds.
talvez você lembre da novela explode coração pelo cigano igor, mas uma das tramas, inclusive apresentada de forma lúdica na abertura, era relacionada as interações via internet, quando a tecnologia ainda estava engatinhado por aqui.
minha carreira no teatro da igreja se resume a 01 figuração. 03 peças encenadas. 01 peça escrita e não montada. 1ª frustração artística.
foram inacreditáveis TRÊS MESES de ensaio para esta produção, três vezes por semana, com recapitulação aos sábados. detalhe é que a única fala que eu tinha era num coro pedindo a crucificação de JC, mas me dediquei como um profissional. a peça foi um sucesso, apresentação lotada na sexta-feira da paixão, no sábado de aleluia o padre pediu uma palhinha na missa, no altar apenas os atores principais e nós, meros figurantes, estávamos gritando ou/e admirando a ressurreição do senhor na porta da igreja.
ter visto a sk8ergirl avril lavigne na telinha causando num shopping center, mexeu demais comigo, fiquei viciado primeiro nos clipes de complicated e sk8er boi e depois em suas músicas. paixão que conduziu toda minha adolescência.
pré internet eu escrevia fanfics, quando ainda nem sabia estar escrevendo fanfics. Eram basicamente histórias de digimon e corpo dourado (simplesmente a melhor novela de tema praia e mistérios da globo).
uma das minhas lembranças favoritas relacionadas a turminha é quando fui colocar o temido aparelho ortodôntico. tava com medo, revoltado, querendo gritar aos quatro ventos que deveriam aceitar meus dentes do jeito que eles eram, tortos. em frente ao consultório tinha uma banca de revista, meu paraíso, e lá encontrei um almanacão de férias da mônica. uma das historinhas falava de sua relação com os dentes e a aparência física. de alguma forma me senti confortado e encarei o medo, ainda um pouco revoltado risos.
Olá Victor. Curti muito a viagem no tempo! hahaha Acho que tive meu primeiro computador com 13 anos, e não joguei tanto jogos de internet. Eu comprava umas revistas que vinham com CDs de jogos, tipo Diablo e etc. Turma da Mônica lembro só que meu personagem favorito era o Louco, e eu gostava muito do Almanacão de Férias. Não li tanto Turma da Mônica, pra ser sincero. hahaha Também tive a minha ruptura com a Igreja, acho que aos dezesseis. Parece que temos algumas coisas em comum, realmente. :)
escorreu um lagriminha de identificação aqui, victor! toda uma geração de pessoas lgbtqia+ vivendo a possibilidade de ser a partir da internet, né?! sinto que até os 2010, pelo menos, a gente tinha um pouco mais de ~espaço~ pra viver isso online, quando era tudo mais ou menos mato (não que isso tenha deixado de acontecer). deu super vontade de ver a série da turminha que também me acompanhou por muito tempo. gosto demais das sua newsletter, abração!