#6 mas quem é o sonhador?
Somos como o sonhador que sonha e então vive dentro do sonho. Mas quem é o sonhador?
A citação que abre a edição dessa newsletter vem do episódio 14 da terceira temporada da série Twin Peaks. O agente Gordon conversa com seus companheiros relatando um sonho que teve na noite anterior com a Mônica Belucci, no final ela faz essa pergunta para ele. Para quem é familiarizado com as obras de David Lynch sabe que sonhos é uma temática recorrente, ou melhor, o confronto com uma outra dimensão que pode ser entendida como o mundo dos sonhos. Em seus dois filmes em que a temática é explorada, Mulhonlland Drive e Inland Empire ( na tradução oportuna, Cidade dos sonhos e Império dos sonhos respectivamente), as protagonistas entram em uma viagem para esse lugar estranho, no fim das contas esse universo que elas precisam enfrentar nada mais é do que a realidade percebida através dos seus sentimentos mais íntimos. Na já citada Twin Peaks o agente do FBI Dale Cooper relata diversas vezes seu contato com o onírico, para ele é parte fundamental da investigação sobre o assassinato da jovem Laura Palmer. Mais tarde na série esse lugar recebe um nome e tem um aspecto físico, a famigerada red room.
Não existe um único caminho para entender completamente as obras do diretor, inclusive existem diversas teorias sobre os temas que ele aborda, o que permite que passemos horas e horas discutindo cada cena em busca de respostas concretas. Respostas que nunca serão estabelecidas, justamente porque essas narrativas não tem intenção alguma de seguir qualquer lógica, assim como os sonhos. Porém, existem algumas coisas que conseguimos extrair delas, claro que aqui estou expondo a minha visão, adoraria saber um pouco sobre o que você pensa também, fique a vontade para compartilhar comigo respondendo esse email.
QUEM É O SONHADOR?
Haruki Murakami possa ao lado de Patti Smith.
Patti Smith em seus livros de memórias, principalmente no Linha M, escreve bastante sobre sonhos, inclusive em um momento da narrativa ficamos confusos ao nos confrontarmos com a sua própria confusão em relação aos limites impostos pela realidade. Essa confusão, digamos assim, começa quando ela termina de ler um dos livros do autor japonês Haruki Murakami, justamente alguém que recorre ao mundo onírico em suas histórias como forma de confrontar suas personagens.
Já no livro O ano do macaco Patti relata os acontecimentos do seu estranho 2016, depois da morte de um grande amigo e da vitória de Trump, a cantora embarca numa viagem por dentro de seu infinito particular, tentando articular com os "fantasmas" ao redor dela para entender tudo o que estava acontecendo na dita realidade. No início da narrativa ela inclusive conversa e é perseguida por uma placa, além de outras coisas um tanto quanto fora do comum, para não dizer estranhas. O mundo real tão perturbado e confuso se confunde com o mundo dos sonhos, pessoas estranhas aparecem e conversam com ela em mesas de cafés propondo inusitadas apostas e ela simplesmente se deixa levar por esse mundo muito louco.
A intenção da autora talvez fosse a de destacar o que realmente estava acontecendo ao seu redor, eram coisas tão surreais que era mais fácil lidar com uma realidade fantástica, ou seja, entrar de cabeça no que estou chamando de mundo dos sonhos. Naquele momento específico o futuro parecia ser um lugar apavorante, então através da literatura ela rasga os limites do tempo e espaço se deixando levar por estranhos elementos.
No já mencionado Linha M também acontecem eventos naturais que deslocam a atenção de Patti e é quando ela encontra um mundo caótico dentro de um livro que finalmente parece encontrar algum conforto. Ela nos confidencia a estranha presença de um constante sonho, isso não a perturba, mas depois da leitura de Crônicas de um pássaro de corda, obra-prima de Murakami, ela se deixa levar para esse estranho mundo particular dos sonhos, assim como os personagens do livro. É a arte se mostrando como um conforto em contraste com as coisas terríveis do dia-a-dia.
O diretor David Lynch ao lado da enigmática personagem do filme Cidade dos Sonhos
Em Crônicas de um pássaro de corda, justamente o primeiro livro do Murakami que Patti lê, o personagem principal se depara com um poço, a partir daí tudo de mais estranho acontece em sua vida. Esse é um resumo muito esculhambado de um livro de mais de mil páginas, risos, mas é uma forma de dar centralidade a uma temática específica. Os personagens se permitem interagir e viver esse mundo estranho que se apresenta para eles. Aliás, isso é um fator muito comum nas obras do autor. E é isso que atrai Patti e que faz com que ela se sinta a vontade para embarcar nesse universo. É isso também que me atrai nessas obras.
Em 1Q84, outra obra-prima do autor, Tengo e Aomame entram sem querer em um mundo distorcido, o Q representa essa marca de diferenciação. Para que consigam sair desse estranho lugar com duas luas no céu, é necessário que os dois se encontrem e juntos busquem o portal de saída. A grande questão é que eles não se viam desde a 4ª série, quando sem querer tiverem um contato muito breve. Mesmo nessa época eles nem sequer eram amigos e agora cada um com mais de 30 anos precisa descobri onde o outro está.
Mais uma vez estou aqui resumindo de uma maneira esculhambada uma obra, mas chamo de novo a atenção para uma coisa: tanto Tengo quanto Aomame criam um universo particular compartilhado apenas com aqueles que eles julgam serem puros. É o mesmo mundo dos sonhos que a Patti Smith precisou fugir quando as coisas ao redor dela ficaram pesadas, a diferença é que em 1Q84 os dois personagens correm perigo real de vida, mas todos são arrastados para uma outra dimensão, assim como as personagens de Lynch. O que é a red room de Twin Peaks senão a materialização do contato entre mundos distintos?
Uma outra relação que me vem a cabeça é a solidão. Murakami ao descrever sua rotina aponta alguns elementos de reclusão associando a sua produção artística e a seu histórico de vida, essa marca é assimilada por todos os seus personagens ( ao menos da maioria dos livros do autor que li publicados no Brasil). Essa tendência ao isolamento faz com que dentro desse universo fantástico surjam novos mundos, desafios surreais que envolvem poços e viagens pelos sonhos em rede de várias pessoas.
Na vida real, Patti Smith demonstra esse mesmo traço de personalidade, mas ela é solitária meio que por escolha e meio que por necessidade. Depois de algumas perdas de pessoas queridas, narradas em seus livros de ensaio, e perdas de bens materiais, além da perda da esperança política, ela precisa encarar um outro mundo, é por isso que em Linha M chega um momento que assim como ela não sabemos mais o que é real. Em O ano do macaco ela parece assumir de novo o controle sem deixar de lado os sonhos. Isso também acontece com a maioria dos personagens de Murakami. Depois de uma longa jornada, é necessário acordar.
Voltamos agora para David Lynch, no documentário The Art Life o cineasta comenta sobre seus processos criativos e como os acontecimentos de sua vida foram se encaminhando até chegar o momento em que ele finalmente produz Erasehead, seu primeiro longa-metragem. O documentário encerra nesse momento, que é justamente quando a carreira de diretor de cinema começa, mas antes disso ele já produzia esculturas e pintava. Me chama muito atenção a maneira como ele rememorava sua vida, muitos dos eventos marcantes que fizeram ser quem ele é são descritos como um sonho. Inclusive o filme cria uma atmosfera onírica para situar o espectador - para quem já viu a terceira temporada de Twin Peaks pode notar no documentário alguns elementos que foram trabalhados ao longos dos episódios.
A maneira como o diretor insere os sonhos em sua vida, coisa que fica mais claro em suas obras, me chama atenção. A necessidade de criar um mundo paralelo povoado de suas próprias referências e seus próprios fantasmas o ajudam a lidar com esse mundo real. Quando ele entrava em seu ateliê embarcava em um sonho desperto. Graças a sua vontade de compartilhar isso conosco podemos também fazer essa viagem através de seus filmes.
Revendo Cidade e Império dos sonhos ( as traduções que entregam mais do que o filme) refletindo sobre os personagens de Murakami e sobre Patti Smith, encontrei algumas semelhanças. Nos filmes as protagonistas passam por uma espécie de jornada, parece um desvio em suas personalidades e elas precisam encarar uma série de coisas estranhas e entende-las para conseguir escapar e voltar ao normal. É interessante notar que ambos os filme se passam em Los Angeles, o sonho dessas personagens está associado ao mundo convidativo do cinema. E o que é uma obra audiovisual senão um convite a criar novas realidades? Já com as personagens de Murakami as jornadas acontecem na maioria das vezes a partir de uma necessidade do outro, o que acaba refletindo dentro de cada um, coisa parecida acontece com a Patti. Partindo em busca de algo muito pessoal ela encara outros mundos nas suas relações pessoais.
O mundo dos sonhos nessas obras segue em paralelo ao mundo real, as vezes invadindo o espaço, causando alguma confusão. A necessidade que nós temos de controle não permite que viajemos com frequência para essa outra dimensão e quando conseguimos relaxar um pouco ainda ficamos presos a necessidade de administrar de alguma maneira lógica a situação. Assistir aos filmes de David Lynch ou ler Patti Smith e Murakami é assumir justamente o que é tão difícil, a falta de lógica das coisas. No fim das contas criamos um mundo para sermos livres, mas quem é o sonhador?
Angelo Badalament é um dos grandes colaboradores de David Lynch é a partir de suas músicas que conseguimos embarcar nessa viagem que é Twin Peaks, deixo como recomendação o álbum com a trilha sonora da primeira temporada para embalar suas viagens. Além disso, outra colaboradora musical do diretor e do compositor é Julee Cruise, ela canta a música tema de Laura Palmer e tem um álbum chamado Floating Into the night onde expande as temáticas a partir das melodias e das letras das canções, algumas compostas pelo próprio Lynch. E por último recomendo o álbum The Big Dream do diretor-cantor, uma viagem sonora para dentro dessa outra dimensão.
Até mais, e obrigado pelos peixes!
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