#11 - o que dizem as cartas?
Para ler ouvindo a playlist vinte e dois mistérios, do querido Isac @topofago, onde ele traduz os 22 arcanos maiores do tarô em músicas do Milton Nascimento.
Todos os dias tento seguir com minha rotina mantendo o horário das 18h livre de compromissos, assim posso passar um cafezinho, muito forte e levemente doce, sentar em frente a televisão e assistir minha novela da seis. Nem sempre mantenho esse padrão, as vezes não consigo assistir a trama que está no ar, as vezes sou conquistado na reta final, enfim, sou aquele velho padrão de consumidor de novelas que para tudo para acompanhar as tramas que gosta. Mas o assunto de hoje não é exatamente sobre o habito de assistir televisão (não ainda pelo menos), mas como tenho acompanhado A vida da gente, atual reprise do horário das 18h, que narra a vida das irmãs Ana e Manuela e seus grandes confrontos com a ajuda da avó Dona Iná, senhorinha que utiliza as cartas do tarô para entender as coisas que acontecem ao seu redor.
Esse detalhe da trama me chamou bastante atenção, pra quem não conhece a história, as duas irmãs, Ana e Manuela, são muito unidas na primeira fase. Manu é rejeitada por sua mãe Eva que só tem olhos para a grande tenista Ana. Até que esta engravida de Rodrigo, vai para Buenos Aires com a intenção de deixar o bebê para adoção, uma ideia de sua treinadora Vitória, porém num último momento decide ficar com a filha, Júlia. Enquanto isso Manuela está com a avó Iná que sonha sempre com um acidente e aí vai consultar as cartas em busca de respostas. Bom, a trama segue com um acidente de carro e Ana fica em coma por alguns anos, quando acorda Manuela agora está casada com Rodrigo e assumiu a maternidade de Júlia, o resto é melodrama bom que a gente gosta. Em vários momentos da trama Iná recorre as cartas para entender o que acontece na vida de suas netas, adiantando acontecimentos ou tentando prevenir desgraças, nem sempre ela consegue, afinal é uma novela e precisa de acontecimentos para fazer sentido.
Na história criada por Lícia Manzo o tarô é usado como um recurso duplo, servindo tanto para conduzir a percepção dos espectadores sobre os sentimentos e emoções, adiantando o que devemos esperar daquelas tramas, como também funciona como um marcador para a doce personagem Iná, vivida pela Nicette Bruno. É interessante observar os momentos em que ela recorre as cartas, quando qualquer outro personagem pede para que ela abra o baralho na espera de um conselho ou de um toque, ela se nega e pergunta o que a pessoa almeja com o tarô, dependendo da resposta ela mesma dá o conselho. Em outros momentos ela abre o baralho por causa de uma angustia pessoal na tentativa de clarear as ideias. É assim por exemplo que ela descobre que a neta está prestes a acordar, como também percebe que todas as pessoas envolvidas na relação das duas irmãs terão suas vidas alteradas. E assim ela segue mostrando para nós telespectadores o que a trama ainda revelará. É um uso muito interessante de um recurso comum as artes e escritores. O tarô aparece em alguns filmes incorporando distintas funções narrativas, alguns roteiristas usam os arcanos na condução da história, outros usam apenas como uma alegoria, uma mensagem final.
Em Carmen Jones, filme de 1955 versão cinematográfica do musical Carmen Jones, adaptação da opera Carmen, por exemplo, o oraculo se apresenta de uma maneira aleatória. A protagonista que dar nome ao filme já demonstrava uma sintonia com o lado espiritual, então quando a cena em que suas amigas estão jogando baralho e ela tira um dos arcanos e se surpreende porque entende que algo de ruim vai acontecer com ela, não é encarado como surpresa nem para a personagem nem para nós que estamos acompanhando a história. Vale ressaltar que Carmen Jones é um filme musical com elenco completamente formado por pessoas negras, as questões relacionadas a espiritualidade (uso esse termo entendendo que ele não precisa estar necessariamente associado a uma religião específica, mas que engloba práticas onde as cartas se encaixam), associadas a cultura não branca era vista como um certo desprezo pela sociedade estadunidense da época. O filme usa desses momentos narrativos para se posicionar em relação aos assuntos que aborda, a liberdade da mulher, as questões raciais entre outros.
No momento em que Carmen tira uma carta, o nove de espadas, ela sabe que algo de ruim vai acontecer. Essa carta reforça o aviso que já havia sido dado no meio do filme quando algo acontece em sua casa e é tratado apenas como uma superstição relacionada as tradições negras. O interessante do filme ao associar a carta com o final trágico da personagem é que Carmen representa um grito de liberdade em relação as condições femininas. É livre, dorme com quem quer, quando quer e se não quiser não cai em amarras sociais. Por ser mulher e negra nos anos 1950 sua situação é vista como desviante a norma padrão da sociedade branca patriarcal e ela sabe que está indo contra tudo aquilo que é pregado que uma mulher deve ser. Esse agouro de morte que ela carrega é o aviso constate de uma sociedade que não suporta sua urgência de liberdade. Ao usar as cartas como último aviso, a trama dá um recado ao espectador, um lembrete de que em breve essa mulher irá pagar caro por isso, ao mesmo tempo em que é um aviso a própria personagem que não se intimida em nenhum momento. É mais uma vez o uso duplo do tarô como um recurso de construção narrativa que alavanca a história para outro ponto sem recorrer a um deus ex machina qualquer. (a interpretação que faço do filme para esse texto leva em consideração o recorte temático)
Já o cineasta e teórico do tarô Alejandro Jodorowsky usa os arcanos em muitos dos seus filmes como forma de representar determinados personagens. Falar de tarô em seus filmes rende diversos textos, quero trazer aqui apenas o seu último filme Poesia sem fim, que é a segunda parte de sua autobiografia cinematográfica. Diferente dos exemplos que trouxe acima, aqui os arcanos ganham vida literal, revelando hora seu lado positivo e hora seu lado negativo. É o que acontece com o arcano XVII, a Estrela, que se revela para o artista como uma mulher em que no primeiro momento o impulsiona para ser quem ele precisava vir a ser e no momento mais sombrio ofusca a sua liberdade justamente por ter a função de joga-lo o mais alto possível, leva-lo a um mundo que pode ser facilmente encarrado como uma ilusão. Preciso dizer que Jodorowsky é um homem machista, a visão que ele tem de personagens femininas e do feminino no tarô enquanto teoria, é muito questionada, nesse filme se evidência isso de forma muito clara. O lado negativo da Estrela se mostra como uma mulher mesquinha que o impede de seguir o seu verdadeiro caminho, essa é a única personagem feminina expressiva no filme e tida como louca ou dissimulada.
Seguindo no filme, após perceber que precisa romper o domínio da Estrela o artista encontra com dois outros arcanos que lhe darão a força e impulsividade necessária para seguir a sua vida, o XV Diabo e a XIII Morte. Essa inclusive é a minha cena favorita, o encontro dos dois arcanos que representam na história o rompimento do rapaz com todos os ideais que o alimentavam até então, em meio a uma crise política no Chile. O que o destino lhe reserva não será flores, ele mesmo destaca isso em uma narração em off, enquanto a Morte pula e dança com o Diabo numa encruzilhada. Essa imagem projeta o fim do ciclo daquele personagem mostrando que dúvidas, recomeços, impulsividade fazem parte do destino do jovem que cairá no mundo em busca de si mesmo, agora equilibrado em relação ao que a Estrela lhe havia revelado anteriormente.
Outro filme que incorpora o sentido de um arcano especifico para ajudar na narrativa é Melancolia do diretor Lars Von Trier. O sentido das cartas do arcano menor X de paus é incorporado em vários momentos do filme, inclusive em uma passagem onde um dos personagens carrega enormes toras de madeira demonstrando cansaço. O filme narra a chegada do planeta Melancolia que irá destruir a terra, enquanto isso as duas irmãs Justine e Claire estabelecem a sua relação intima, hora na tentativa de exprimir o sentimento hora abraçando-o inteiramente. A cena final faz uma alusão ao sentido que o arcano apresenta, mais uma vez impulsionando a narrativa para um entendimento a partir da ideia que a carta traz, apesar de que não é necessário a compreensão do arcano para sentir o impacto que o filme reproduz.
Para pensar melhor sobre o uso dos arcanos no audiovisual e nas artes em geral conversei com Mila Texeira, que é poeta, dramaturga, roteirista e cartomante. Costuma dizer que tudo é linguagem, até o que não é. Perguntei a ela sobre o que ela pensava sobre o uso do tarô nas obras audiovisuais na tentativa de impulsionar as narrativas, ao que ela me respondeu: "É um recurso que pode gerar situações muito boas. Sempre lembro do Cleo de 5 às 7, da Agnès Varda, que começa com uma cena numa cartomante. Aquela cena acaba desdobrando todo o conflito central da protagonista. Se não me engano, uma das cartas que sai é Morte. A cartomante anuncia que Cleo está doente e que vai morrer. Essa não é a representação da carta da Morte, mas para fins ficcionais, acho que funciona, por mais que talvez possa confundir pessoas leigas e criar uma resistência ao tarô."
Depois da conversa, que reproduzo inteira logo mais a baixo, fui assistir ao filme Cléo de 5 às 7, onde logo na primeira cena a protagonista procura uma cartomante para entender seu caminho. A mulher não lhe diz claramente o que irá acontecer em sua vida, mas após a consulta ela diz para alguém de sua casa que a personagem vai morrer e que ela está com câncer. Acompanhamos o percurso dessa mulher enquanto espera os resultados do exame médico, porém passamos o filme inteiro com essa certeza dada pela cartomante na primeira cena. É interessante assistir ao filme com essa definição já cravada pois a partir daí a cineasta vai brincando com a nossa expectativa. De certa forma é mais ou menos isso que Clarice Lispector faz no livro A hora da estrela. O momento em que Macabéa consulta uma taróloga é o ponto de virada e alivio que nós leitores tanto esperávamos ver na vida daquela mulher tão sofrida, e é isso que a cartomante nos dar, algumas linhas de deslumbre de um futuro que não chega nunca, já que sua leitura foi invertida e a estrela que Macabéa encontra e a derradeira.
O tarô assim como outros métodos divinatórios podem e são usados em obras de artes com um intuito muito especifico, as vezes impulsionar a narrativa e as vezes só ilustrar a beleza de um aspecto de um arcano. É muito interessante perceber a maneira como isso está sendo inserido na obra e viajar no sentido que ela provoca. Penso que o uso dos arcanos provoca a nossa compreensão, justamente por ter um significado aberto, assim como as obras de arte. A Mila Teixeira fala um pouco disso na entrevista e deixa também alguns exemplos.
Victor Ramos: Como aconteceu o seu interesse em relação ao tarô?
Mila Texeira: Cresci com minha avó lendo cartas. Acordava e ela e meu avô estavam na cozinha, ele com jornal e ela com o baralho aberto perto do café da manhã. É uma lembrança muito forte que tenho da infância e adolescência. Minha avó lia cartas pras vizinhas, então, era comum ter gente que ela atendia em casa, também. Ela me ensinou sobre a linguagem do tarô e eu sempre achei bonito, mas nunca dei muita bola. Só comecei a estudar com afinco mesmo há quatro anos. Ela faleceu há seis.
VR: Ao escrever ou criar artisticamente, você costuma tirar alguma carta como inspiração? Ou relaciona os arcanos em seus processos artísticos?
MT: Só usei esse procedimento uma vez, pra um poema que escrevi pro aniversário de um amigo. Não é algo que faz parte do meu processo artístico de forma tão efetiva, mas que acaba rondando as referências que coleto, de artistas que admiro. Não que essas referências necessariamente tenham a ver com o tarô, mas gosto de criar relações entre obras e cartas. Ouço uma música, leio um poema, vejo um quadro e penso: nossa, isso é muito *insira aqui uma carta do tarô*. Então, acho que o tarô acaba me influenciando artisticamente dessa forma, mas ainda não criei pensando nele com afinco, com exceção do poema que mencionei.
VR: Você acha que a presença obvia dos arcanos em obras artísticas estimula uma interpretação prévia atrapalhando a criação de significação livre?
MT: Sim, com certeza. Como o exemplo que mencionei, de Cleo das 5 às 7. Os próprios nomes das cartas já podem gerar uma visão categórica, que não deixa margem pras ambiguidades e particularidades que as cartas carregam. Por mais que essas nomenclaturas não tenham surgido por acaso, muita gente tem receio ou simpatia por certas cartas pelo nome delas. E aí, não sei se é tanto uma função das pessoas que criam arte com base no tarô, se é uma responsabilidade, passar as possibilidades das cartas para além de um lugar-comum. Enquanto artista, penso que o mais interessante é usar o que favorece minha narrativa. As interpretações não cabem a quem produz arte.
VR: Por fim, quais exemplos de uso do tarô nas artes você mais gosta?
MT: Amo a Betye Saar e tudo o que ela criou tendo o tarô como base. Acho que é a minha preferida ao tratar do tema nas artes plásticas. Também curto muito o trabalho da Elisa Riemer, colagista, que assina as ilustrações do tarô Nosotras. Cada carta é uma baita obra de arte.
Agradeço a Mila pela disponibilidade em responder as perguntas e me ajudar a pensar nesse texto, aproveito para divulgar seu trabalho. O recém lançado livro de poesia "A proclamação da vulgaridade ou quantos furos uma calcinha pode ter", além disso ela oferece cursos de tarô e de roteiro ( tive a oportunidade de fazer e indico demais), @poetadospobres para mais informações.
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